sábado, 21 de junho de 2014

500 anos de Maquiavel

Cinco séculos de ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade.Por Márcia Junges
A influência de Maquiavel nunca deixou de ser sentida no mundo
fonte: http://www.domtotal.com
“Os termos ‘maquiavelismo’ e ‘maquiavélico’ se impuseram no imaginário político moderno europeu como sinônimos de uma ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade”, reflete o filósofo português António Bento(*), na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. E acrescenta: “acusar um determinado inimigo político de ‘maquiavelismo’ e estigmatizar publicamente os seus atos como ‘maquiavélicos’, constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso político”. A influência política do pensador florentino, “a despeito de um desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo contrário, antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira não poderia deixar de acontecer, preferencialmente no próprio seio daqueles que se declaravam seus inimigos políticos”.
Leia a entrevista:
O que são o maquiavelismo e o hipermaquiavelismo?
Uma resposta adequada e, tanto quanto possível, exaustiva, à sua pergunta mobilizaria certamente uma biblioteca inteira, não uma biblioteca qualquer, nem sequer uma biblioteca especializada em estudos sobre Maquiavel, mas uma “biblioteca total”, digamos que à semelhança daquela “Biblioteca de Babel” concebida por Jorge Luis Borges! Tal a “reputação” e tamanhas as lendas associadas ao nome Maquiavel!
Mas talvez devamos começar por modificar ligeiramente a pergunta, de modo a obtermos outro tipo de respostas, respostas que, precisamente, digam respeito a outro tipo de perguntas: não serão antes os “médicos” que, a posteriori e analisando de perto a “doença”, agrupam sintomas até então dissociados (batizando-os, desbatizando-os e rebatizando-os), compondo um “quadro clínico” novo e original à custa de um sortilégio extraordinário e de um estranho poder de conotar signos (signos políticos, no caso de Maquiavel) que um determinado nome próprio possui e liberta.
Carl Schmitt compreendia Maquiavel como alguém mais do que apenas o autor de O Príncipe. Tendo esse horizonte em vista, que chaves de leitura devem ser tomadas em consideração a partir das outras obras desse pensador, como Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio?
O problema não é pacífico, nem isento de certas paixões, digamos assim, hermenêuticas. Muito antes de Carl Schmitt, outros autores, não menos importantes que o jurista alemão, insistiram no duplo aspecto do ensinamento político de Maquiavel, consoante este é deduzido de O Príncipe ou de Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (ou ainda de Histórias Florentinas).
Afinal, bem vistas as coisas, não teria sido o próprio Maquiavel — de acordo com uma tradição republicana, liberal, romântica, e até marxista, de interpretação do seu pensamento — muito pouco “maquiavélico”, um daqueles instrutores de príncipes que conhecem o jogo político do Estado e que integralmente o ensinam, ao passo que o “maquiavelismo” vulgar, esse sim, ensinaria a fazer outra coisa?
Tal é já a opinião do prudente Espinosa , para quem “talvez Maquiavel quisesse mostrar quanto uma multidão livre deve ter medo de confiar a sua defesa a um só, o qual, se não for vaidoso nem julgar que pode agradar a todos, tem de temer revoltas todos os dias, sendo por isso obrigado a precaver-se e a atraiçoar a multidão em vez de governá-la”. Em idêntico sentido se pronunciou Jean-Jacques Rousseau : “Fazendo crer que dava lições aos reis, dava-as bem grandes aos povos. O Príncipe, de Maquiavel, é o livro dos republicanos”.
Quanto ao ódio que os seus contemporâneos destilaram sobre Maquiavel, apresentara-o já Trajano Boccalini , na primeira década de seiscentos, nos seguintes termos: “Os inimigos de Maquiavel consideram-no homem digno de punição porque revelou como os príncipes governam e, assim, instruiu o povo; ‘colocou dentes de cães nas ovelhas’, destruiu os mitos do poder, o prestígio da autoridade, tornou mais difícil governar, porque os governados podem saber a este respeito tanto quanto os governantes”.
De que modo Maquiavel e Hobbesproblematizam a questão da natureza humana e do absolutismo? Como tais compreensões repercutem na política ocidental?
A questão do “absolutismo”, se tomarmos este conceito no seu estrito significado histórico e político, só se põe a partir do momento em que Jean Bodin , primeiro, e Thomas Hobbes, depois, definem e formulam, cada um, evidentemente, à sua maneira, o conceito jurídico-político de “soberania”. Creio que cometeríamos um anacronismo se porventura começássemos a falar impropriamente de “soberania” e de “absolutismo” em Maquiavel.
Que um paradigma político imunitário governa hoje de maneira transversal e capilar as relações humanas globais no seu conjunto, comprova-o o fato de a modulação afetiva e o controle da intensidade do medo se terem tornado um assunto político de interesse público. Cada vez mais, a “sociedade do risco” em que nos movemos é permanentemente ameaçada pelo pânico ante toda a espécie de potenciais catástrofes (ambientais, ecológicas, epidêmicas, terroristas, políticas, econômicas, etc.) que devem ser cientificamente prevenidas.
Como observa Frédéric Neyrat : “A biopolítica contemporânea é imediatamente uma imunopolítica de tendência paranoica, que desconfia de fronteiras que se tornam cada vez mais indelimitáveis. […] É, com efeito, impossível compreender os objetivos proclamados da biopolítica sem interrogar a sua ‘outra cena’, o seu fantasma de imunização absoluta, de proteção total”.
Em que sentido as constatações políticas de Maquiavel ecoam nas concepções políticas de Nietzsche , como na grande política, na vontade de poder e na transvaloração dos valores?
Creio, sinceramente, que em absolutamente nenhum sentido. Efetivamente, não creio que se possa, e menos ainda deva, misturar o sol materialista de Florença com o nevoeiro metafísico de Bayreuth… Isto, claro, ressalvando embora toda a genuína admiração de Nietzsche por Maquiavel: “A minha recriação, a minha predileção, a minha cura de todo o platonismo foi sempre Tucídides . Tucídides e, talvez, O Príncipe, de Maquiavel, me são mais afins pela determinação incondicional de não se deixar iludir em nada e de ver a razão na realidade — não na ‘razão’, e menos ainda na ‘moral’…”, confessa o “cabeça-de-dinamite” (Ernst Jünger) em O Crepúsculo dos Ídolos.
Nesse sentido, como o “estatuto da mentira na Filosofia Política” pode ser compreendido se pensarmos a partir da perspectiva de Maquiavel e Nietzsche?
São, com certeza, perspectivas distintas as de Maquiavel e de Nietzsche em torno da “mentira”, em geral, e, sobretudo, a respeito da “mentira política”, em particular. Contudo, há que sublinhar igualmente a existência de afinidades e de semelhanças. No caso de Nietzsche estamos, por um lado, perante uma teoria artística da mentira, que faz do poder do falso uma magnificação do “mundo enquanto erro”, transformando a vontade de enganar num ideal estético superior e, por outro, diante de uma teoria pragmática da linguagem.
Num ensaio de 1873, intitulado Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral, Friedrich Nietzsche elabora uma teoria da verdade que está muito próxima de algumas modernas teorias pragmáticas da linguagem. Em primeiro lugar, a verdade é aí valorizada porque é útil para a comunidade, boa para a sociedade, e não porque corresponda a um efetivo conhecimento das coisas.
Em segundo lugar, a linguagem, enquanto instrumento privilegiado do conhecimento, é fundamentalmente uma estrutura de dissimulação, um mecanismo de apropriação e de captura da realidade, e não uma espécie de espelho da realidade. O ponto de partida desta concepção nietzscheana da linguagem é que a verdade não é valorizada por interesses, em primeiro lugar, científicos, ou éticos, em geral, mas por sujeitos interessados na sobrevivência e numa vida comunitária, social, estável.
Convém sublinhar que não se trata, para Nietzsche, de pôr em dúvida a vontade de verdade, embora ele nos venha lembrar que os homens, de fato, não amam, naturalmente, a verdade, e que muitas vezes, mais do que os seus erros, são os seus interesses e a sua estupidez que os separam da verdade. Com muita seriedade, Nietzsche aceita pensar este problema colocando-se, de boa fé, no próprio terreno em que o problema é posto: no terreno moral. Assim, Nietzsche procura antes pensar o que a verdade pode significar como conceito, que tipo de forças e que espécie de poderes se apropriam dela. Quanto a Maquiavel, o problema da mentira surge associado à necessidade de dissimulação/simulação intrínseca ao político e, por vezes, à estritamente necessária inobservância da palavra dada. Com efeito, no capítulo XVIII de O Príncipe, o secretário florentino observa o seguinte:
“Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com integridade e não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê-se pela experiência do nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia, dar a volta aos cérebros dos homens; e no fim superaram aqueles que se fundaram na sinceridade. Não pode, portanto, um senhor prudente, nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se volta contra ele e se extinguiram os motivos que o fizeram prometer. E, se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas, porque eles são ruins e não a observariam para contigo, tu também não a tens de observar para com eles, nem faltarão jamais a um príncipe motivos legítimos para mascarar a inobservância”.
Finalmente, há que referir, ainda que necessariamente de forma muito breve e alusiva, às reflexões de Hannah Arendt , uma admiradora confessa do pensamento de Maquiavel, sobre a mentira política moderna. Não foi há muito tempo que a autora de TruthandPolitics (1967) chamou a nossa atenção para o carácter ativo e afirmativo da mentira, para o fato de “as mentiras, desde que utilizadas como substitutos de meios mais violentos, poderem ser consideradas como instrumentos relativamente inofensivos no arsenal da ação política”.

Que a política e a verdade sempre estiveram em más relações e que a boa fé jamais foi incluída na classe das virtudes políticas, é algo bem conhecido e mesmo um lugar comum. Com efeito, o segredo, os arcanaimperii, o engano, a falsificação deliberada e a mentira descarada são usados como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os primórdios da história documentada. Não por acaso, Hannah Arendt lembra-o constantemente: “As mentiras foram sempre consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, mas também à do homem de Estado.
Por que será assim? O que é que isto representa, por um lado, para a natureza e a dignidade da esfera política, e, por outro, para a natureza e a dignidade do domínio da verdade e da boa-fé?”
Um dos pontos interessantes da argumentação de Hannah Arendt neste ensaio prende-se com o reconhecimento da existência de uma transformação ou mutação na história da mentira. Uma mutação simultaneamente na história do conceito de mentira e na história da própria prática do mentir. Segundo Arendt, a mentira teria modernamente atingido o seu limite absoluto, tornando-se agora “completa e definitiva”.
Ao contrário de Oscar Wilde , que no seu O Declínio da Mentira diagnostica uma agonia da mentira e lamenta que os políticos, os advogados, e mesmo os jornalistas, saibam cada vez menos mentir e cultivem cada vez menos a mentira, Arendt considera preocupante o crescimento hiperbólico da mentira na arena política moderna: “A possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que decorre da moderna manipulação dos fatos.
Mesmo no mundo livre, onde o governo não monopolizou o poder de decidir e de dizer o que é ou não é da esfera da fatualidade, gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie de mentalidade de raison d’État, outrora confinada ao domínio dos negócios estrangeiros, e, nos seus piores excessos, às situações de perigo iminente e atual”. Neste ensaio, Arendt esboça a problemática da efetividade e da performatividade de uma mentira cuja estrutura e acontecimento estariam ligados, de maneira essencial, ao conceito de “ação”, e, mais precisamente, ao conceito de “ação política”. É este um motivo presente logo nas primeiras páginas de Lying in Politics.
Foi apenas no século XIX que se proferiu de modo veemente o vaticínio da morte de Deus, através do último homem que Nietzsche assenta na praça do mercado. Contudo, as bases desse deicídio já vinham sendo construídas antes do filósofo alemão. Nesse sentido, é correto compreender Maquiavel como um dos pilares não só do laicismo, mas de um fenômeno ainda mais profundo como o niilismo?
Tem-se abusado em demasia dos conceitos de “laicismo”, “secularização”, “niilismo”… Não posso agora entrar na sua discussão, mas recordo que num um texto escrito nos anos 40 do século XX, intitulado O fim do maquiavelismo, Jacques Maritain , reatualizando sob a forma de um tolerante humanismo cristão os velhos argumentos dos autores católicos da Contrarreforma contra Maquiavel, insiste na “perversidade” do secretário florentino ao sublinhar que ele ensinou os homens não apenas a fazer o mal, mas a fazê-lo de consciência tranquila:
“O que era simples fato, com toda a fraqueza e inconsistência que, mesmo no mal, é própria das coisas acidentais e contingentes, depois de Maquiavel ficou sendo direito, com toda a firmeza e solidez próprias das coisas necessárias. Esta é a perversão maquiavélica da política, que emerge do fato da “tomada de consciência” maquiavélica do comportamento político médio da humanidade. A responsabilidade histórica de Maquiavel é a de ter aceitado, reconhecido e adotado como regra o fato da imoralidade política e de ter declarado que a boa política, a política conforme sua natureza e seus autênticos fins, é, por essência, uma política não moral”.
Mais próximo de nós no tempo, um autor da envergadura de Leo Strauss chama a atenção para o caráter violentamente anticristão da doutrina de Maquiavel, para a sua moralidade diabólica e sem escrúpulos. Maquiavel teria sido um ateu consciente empenhado em subverter e destruir o cristianismo. Maquiavel teria sido o primeiro filósofo político moderno, alguém que, tendo iniciado a revolução contra a tradição do pensamento político ocidental, iniciaria também o declínio da própria civilização ocidental. Tudo o que agora posso laconicamente dizer — sem, contudo, justificar a minha posição — é que esta não é, de todo, a minha opinião.
O que "O Príncipe” moderno deveria aprender com a obra do pensador florentino?
Para que possamos responder a esta pergunta é preciso que saibamos exatamente a que ponto o “Estado de direito” hodierno se afastou realmente de Maquiavel. É necessário que avaliemos primeiro, e escrupulosamente, o que nos custa esse afastamento, o que pagamos, enfim, por ele. É necessário, por isso, que saibamos até onde, de maneira talvez insidiosa, Maquiavel se aproximou de nós e do nosso “Estado de direito”.
É, pois, necessário que o próprio “Estado de direito” apure o que há ainda de maquiaveliano naquilo que lhe permite pensar-se e definir-se contra Maquiavel. Por fim, é necessário ainda que se avalie em que medida o protesto moral do “Estado de direito” contra Maquiavel não será talvez ainda uma armadilha que o próprio Maquiavel lhe estendeu — uma armadilha de onde ele, Maquiavel, maliciosamente o espreita e observa.
*António Bento é doutor em Filosofia pela Universidade da Beira Inteiror — UBI, em Covilhã, Portugal, onde é vice-diretor do curso de Ciência Política e Relações Internacionais. Aí integra como investigador o Instituto de Filosofia Prática (IFP) e o Centro de Estudos Judaicos (CEJ). É membro do editorial da revista MachiavelliandMachiavellism integrada no ProgettoHypermachiavellism (www.hypermachiavellism.net). Organizou e editou Maquiavel e o Maquiavelismo (Coimbra: Almedina, 2012) e Razão de Estado e Democracia (Coimbra: Almedina, 2012). Mais recentemente, organizou e editou (com José Rosa) RevisitingSpinoza’sTheological-PoliticalTreatise (Zürich — New York: Hildesheim, Georg OlmsVerlag, 2013).

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Saint-Évremond e o Epicurismo Moderno

por Breno Lucano

Portrait of Charles de Saint-Évremond. c. 1680s
Mesmo militar, Saint-Évremond se encontrava regularmente com um grande nome da cena intelectual do  século XVII: Pierre Gassendi. Tal como filosofia, assistia suas aulas de astronomia em Paris na companhia de Cyrano de Bergerac.

Após uma longa discurssão sobre os limites da razão, sobre o caráter restrito de seus poderes, sobre a evidente limitação dos nossos conhecimentos, sobre a possibilidade ou incapacidade de se pensar numa ou em várias coisas, Saint-Éveremond conclui: a filosofia não serve para nada! Não há qualquer motivo para investir trabalho, dispensar energia e tempo numa operação que, no final das contas, não trará nenhum benefício.

Houve tempo em que cria nos discursos contraditórios dos mais variados filósofos, desde os gregos até os de seu tempo. Com o avançar da idade, entra em conformidade com o espírito cético e passa a adotar o famoso epokhé cético, a suspensão de juízo, e de buscar incessantemente.  Dá as costas para os dogmas, e o simples prazer em discurssar, e abraça a viva filosofia prática, pragmática, vinculada ao cotidiano. Assim, seu imperativo categórico passa a ser:
"Falando sabiamente, temos mais interesse em aproveitar o mundo do que em conhecê-lo."
Seguir Gassendi, mas esbarrar em Descartes. É provável que tenha lido Meditações Metafísicas (1641) ou Princípios da Filosofia (1644). Não se sabe se conheceu Discurso do Método (1637). Logo conclui que Descartes propunha demonstrar a existência da alma, de uma substância espiritual, imortal. Saint-Éveremond não concorda. Salienta que a religião não convence a ninguém, nem mesmo a um filósofo em busca de si.

O cogito não passa de piada, talvez até de bom gosto, capaz de valer algumas gargalhadas. Nele temos apenas um amontoado de raciocínios insólidos, razões fracas, falta de segurança. Chega até mesmo em parodiá-lo escrevendo em sua Lettre à Monsieur (Carta ao Senhor): "amo, logo sou". Mas Saint-Évremond  não se empenha, como Gassendi, em refutar o cogito cartesiano: para ele a vida vale mais que o discurso.

Descartes, mas também Sêneca entra na lista negra de Saint-Évremond. Não aprecia a literatura, não confia em suas linhas. De sorte que cada afirmação produz logo ímpeto de desmistificação. Evitar honrarias? Mas quem fala é um patrício, preceptor do imperador Nero. Recusar a riqueza? Mas quem ensina é um grande proprietário de terras. Suportar o sofrimento? Sim, tal como aquele que escreve longa apologia ao imperador Cláudio para escapar do exílio.

A distorção entre sua pedagogia e a vida do pedagogo estóico não seria tão grave se não fosse pela longa reflexão sobre a morte. Não se trata, reflete Saint-Évremond, em se saber que vai morrer, preparar a morte, meditá-la todos os dias, viver com o sentimento permanente no pensamento tanatológico, mas em viver, e bem viver. De modo que a melhor forma de abordar o fim derradeira é sabê-lo inevitável. E pronto. Filosofar não é aprender a morrer, mas viver melhor na espera da morte. Mais vale "viver tranquilamente", escreve, "do que morrer com constância".

Saint-Évremond é epicurista, mas não ortodoxo. Talvez mais à maneira dos poetas clássicos, como Horácio e Catulo. Suas idéias sobre o tema se encontram em dois textos: Sur les plaisirs (c.1658) e Sur morale d'Epicure (c. 1684). Antes, Epicuro já fora relido por Lorenzo Valla em Sobre o Prazer e Erasmo em Banquete Epicurista. Mas a verdadeira e definitiva reabilitação deve-se à Gassendi, com Vidas e Costumes de Epicuro.

Do Jardim, retêm o essencial: o soberano Bem reside na volúpia; a existência de um tropismo natural nos conduz a desejar o prazer e a fugir da dor; a necessidade de uma ética imanente indexada na boa e bela vida; a existência de um divino despreocupado com o destino e a ação dos homens; a inexistência do que quer que seja de imaterial; visar o puro prazer de existir. Contudo, faz uma releitura própria de Epicuro à medida em que se afasta de sua moralidade ascética.

Para viver não é necessário refletir ou pensar demais. Aprofundar-se na vida é o necessário e suficiente. Nisto se distancia de Pascal, outro conhecido nome da época. Ora, Pascal afirma que todo o mal provém do homem não saber ficar sentado, sozinho, num quarto. Mas porque se deveria gostar de ficar sozinho num quarto quando se pode optar por um banquete? Não há motivo em remoer as mágoas, pensar sua condição miserável, somar o pior ao pior. Isso nada mais é que ampliar uma negatividade que nos atormenta naturalmente.

Posto isso, se for para realmente pensar, Saint-Évremond opta por meditar sobre a vida do que sobre a morte, sobre a alegria que sobre a desventura. Epicuro contra Sêneca, Saint-Évremond contra Pascal que em tudo desaprova o divertimento. Nada de jogos, altos cargos, caçada, barulho, canção, versos. Nada de tudo aquilo que dá sabor e odor à vida.

Atribuir a Saint-Évremond o título de filósofo? Sim, claro. Mas não um filósofo que faz filosofia, mas como alguém que, à maneira clássica, está mais ocupado com o material moral. Não escreve tanto, e nem aprofunda os pormenores epicuristas na modernidade. Para isso, temos Gassendi. Seu intuito fora unicamente o de aprofundar a alegria da vida.
Fonte: http://www.portalveritas.blogspot.com.br/2014/05/saint-evremond-e-o-epicurismo-moderno.html#more

sábado, 5 de abril de 2014

Irmãos do Livre Espírito

De onde vem a expressão "Livre Espírito"? Encontram-se também "Novo Espírito", "Espírito de Liberdade", "Liberdade pelo Espírito", utilizadas para denominar a mesma coisa. A expressão provém das invenções da Igreja, habituada a nomear o que lhe escapa para melhor o circunscrever e combater. O Manual dos Inquisidores de Eymerich estabelece então listas em que aparecem pneumatômacos, para quem Pai e Filhos são Deus, mas não o Espírito Santo; papianistas, que acreditam que mil anos após sua morte Cristo irá reinstaurar o reino dos judeus com os eleitos; pepuzistas, que consagram leite e não vinho durante a missa, ao contrário dos hidroparastatas, apreciadores da água para os cálices; messalinianos - ou euquitas, ou entusiastas -, que passam toda a vida rezando, sem nenhuma outra atividade; audianos, para quem a divindade tem forma humana; tascodrogitas, que veneram duas putas; apotáticos, que detestam pessoas casadas e que possua algum bem próprio. A mania de classificação dos regimes autoritários que querem nomear o que condenam está provavelmente na origem da expressão, que não existe na época da coisa em seu início - no século XIII - mas à medida que o tempo passa.

Pode-se conjecturar que o Livre Espírito se forja de acordo com o modelo do Espírito Santo. O segundo qualifica a providência divina no mundo, é o espírito de Deus que revela às almas os segredos divinos. O Espírito Santo preside à concepção e ao batismo de Jesus. Mais tarde, ele desce sobre os discípulos reunidos o cenáculo e se comunica aos nossos crentes. De modo que é possível inferir que, inversamente, o Livre Espírito manifesta o poder do homem no mundo, que ele designa a inteligência e a razão humanas, aplicadas ao real, e que, dessa maneira, explicita o que é tido aos olhos dos outros por mistérios. Também ele vincularia os adeptos novos à doutrina... Um anti-Espírito Santo que faz o céu descer à terra e instala cada homem no centro do mundo, à maneira de Deus...


Também não é possível deixar de relacionar a expressão aos movimentos milenaristas, especialmente o de Joaquim de Flore, místico italiano do século XII para quem a História já teve duas épocas: a primeira era da lei e do Velho Testamento, é o tempo de Deus Pai, de Adão a Noé, durante o qual os homens vivem de acordo com a carne, no temor e na escravidão; a segunda era da graça, é o do Novo Testamento, o tempo do Filho: vai de Eliseu à revelação de Cristo; durante esses séculos, os homens vivem de acordo com a carne e o espírito na fé; uma terceira época, que procede dialeticamente das duas precedentes, inicia-se com o tempo do monaquismo de são Bento: o tempo do Espírito Santo que será vivido na caridade, na liberdade e na inocência renovada de toda a humanidade. Para Joaquim de Flore, o tempo do Filho passou. A Igreja espiritual vai substituir sua fórmula temporal e visível. Essas teses, expostas no Livro de concordância do Velho e do Novo Testamento, produzem nos libertinos espirituais uma matriz na qual eles inscrevem sua própria dialética.

Irmãos e Irmãs do Livre Espírito aderem a esse esquema de uma leitura poético-racional da História. A seus olhos, o plano de Deus é menos linear, como ensina o catolicismo apostólico e romano, do que cíclico. O tempo advindo altera as referências e permite considerar a abolição das escrituras. Uma inversão dos valores é induzida e legitima por esta razão lógica singular: enquanto a Igreja ensina  pobreza, a castidade e a obediência para os membros do clero e para seus fiéis, os partidários do Livre Espírito efetuam uma inversão de valores. De modo que eles celebram o luxo, o refinamento, os prazeres, a sexualidade absolutamente livre e a recusa a reconhece qualquer autoridade que seja: a lei dos homens contra as leis de Deus.

Enfim, esse Livre Espírito interpreta livremente as Escrituras. Faz a Igreja cair em sua própria armadilha buscando nos textos veterotestamentários ou nos Evangelhos, até mesmo nas Epístolas de Paulo, enxertos que o ajudem a fundamentar seus edifícios libertinos. As Bem-Aventuranças ensinam que os pobres de espírito aumentam a velocidade de sua trajetória para o céu? Os partidários do Livre Espírito convidam a deixar as Escrituras de lado e reencontrar a inocência primitiva. Paulo afirma que somos o tempo de Deus? As beguinas e os beguinos, os amaricianos e laoístas, depois outros sectários libertinos o tomam ao pé da letra e transformam o corpo em receptáculo do divino no homem. João ensina que nascer de Deus impede de ser maculado pelo pecado pois em cada um sempre resta a marca da divindade? O Livre Espírito conclui que a graça subsiste e que os atos não tem importância nenhuma, nunca...
Fonte: http://www.portalveritas.blogspot.com.br/search/label/Irm%C3%A3os%20do%20Livre%20Esp%C3%ADrito
ONFRAY, Michel. Contra-História da Filosofia 2: O Cristianismo Hedonista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p. 81-84

quinta-feira, 27 de março de 2014

Anaximandro de Mileto e o Ilimitado

por Breno Lucano

Em Anaximandro algo muda nos pré-socráticos. Isso ocorre porque, de um lado, a phýsis era entendida como algo perceptível, definido, delimitado, algo que poderia ser facilmente apreendido, como o úmido, o seco, o quente ou o frio. A phýsis agora se torna o ápeiron
Vamos por partes. Ápeiron é uma palavra composta pelo prefixo negativo "a" e pelo substantivo "péras", que indica limite, fronteira, extremidade. Ápeiron é, portanto, etimologicamente aquilo que não possui fim, imenso, ilimitado, inumerável, incalculável. Em termos filosóficos, é o indeterminado que, não possuindo nenhuma das coisas e nenhuma das qualidades dá origem a todas elas.
Três fragmentos nos demonstram o significado de ápeiron:
"Princípio (arkhé) dos seres... ele disse que era o ilimitado... Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo (Simplício, Comentário da Física de Aristóteles)."
"Esta (a natureza do ilimitado) é sem idade e sem velhice (Hipólito, Refutação das Heresias)."
"Imortal... e imperecível (Aristóteles, Física)."
Via de regra, os documentos sobre Anaximandro são interpretados da seguinte maneira: todas as coisas se dissolvem, se dissipam onde tiverem sua gênese, conforme a necessidade e em função do tempo. O ilimitado é eterno e indissolúvel. Anaximandro foi sucessor de Tales na história do pensamento, embora pouco se relacione com as idéias de seu mestre. Foi o primeiro a utilizar a terminologia arkhé e algumas considerações merecem ser tomadas. Identificou claramente a phýsis à arkhé enquanto aquilo que só pode ser alcançado pelo pensamento, pois o princípio não se confunde com os elementos visíveis e empíricos. Daí decorre que os princípios são formulados tendo por base algo que é quantitativamente sem limites e qualitativamente indeterminado. 
Sendo eterno, o ápeiron é superior aos deuses. Como dirá o texto de Aristóteles em que parafraseia Anaximandro, é imortal e imperecível, portanto, incorruptível. O ilimitado é eterno, enquanto os deuses, todos eles, foram gerados. Entende ainda que os elementos se separam do princípio para a geração, formulam a multiplicidade das coisas como opostas ou contrárias para, somente depois, retornar ao princípio. Em outras palavras, Anaximandro explica como do indeterminado e ilimitado surgem as coisas determinadas e limitadas, ou ainda a origem das coisas individuais.
Anaximandro se espanta com o que se chamará de dialética. O mundo enquanto guerra dos contrários é formulado pelo indeterminado que dá origem à pluralidade das coisas. Assim, temos o fogo que consome o ar; a umidade do mar que, ao se evaporar, se torna ar; a sequência das estações do ano; as diferenças entre os animais em termos de anatomia e fisiologia; as diferenças dos homens em termos étnicos, psicológicos e culturais. As diferenças decorrem do processo de individuação dos seres e, ao mesmo tempo que formula o kósmos, é uma injustiça que precisa ser reparada, já que a justiça é a paz e o mundo é eterna guerra. 
Existe ao menos uma dúvida quanto a Anaximandro. Quando afirmava que existem variados mundos não se tem certeza se com isso ele afirmava que existem mundos simultâneos originados do ápeiron ou se mundos sucessivos produzidos a cada nova separação no interior do ápeiron, depois do fim de cada mundo. Seja como for, esta é uma questão em aberto que merece pesquisas posteriores.
fonte:http://www.portalveritas.blogspot.com.br/2013/11/anaximandro-de-mileto-e-o-ilimitado.html#more

sábado, 11 de janeiro de 2014

Demócrito e o Riso

  Breno Lucano

Demócrito
Demócrito filósofo, mas também Demócrito viajante. Nativo de Abdera, Demócrito utiliza seus recursos obtidos por herança familiar em peregrinações, atravessa o Mediterrâneo, alcança a África oriental, toca as margens do Mar Vermelho. Toma lições com Leucipo, mas também de teologia e astronomia com os magos caldeus, os padres egípcios o iniciam na geometria e os gimnosofistas indianos lhe revelam o ascetismo e os exercícios espirituais de meditação.
Sobre suas viagens, conta uma anedota que Demócrito a inteligência de um carregador particularmente esperto. Compra o carregador e, posteriormente, o promove a secretário. Mais tarde este se tornará o famoso filósofo Protágoras, aquele do homem medida de todas as coisas...
Hegel se equivocou ao afirmar que o anedotário filosófico é desprovido de significado e que, portanto, Diógenes não é um filósofo. Porque toda a vida de Diógenes é baseada em anedotário, assim como de Demócrito. E uma das estórias mais conhecidas do homem de Abdera é sobre sua cegueira. A cegueira pode representar então o homem movido pelas paixões, decorrendo daí uma aritmética dos prazeres capaz de propor sentido ao mundo.
O certo é que Demócrito se utiliza frequentemente de Leucipo: o real se constitui por átomos; não há dualidade platônica entre material - o Mal - e imaterial - o Bem; desconstrói a idéia entre espírito e carne; dilacera os deuses, a transcendência e a causalidade divina; o devir é única instância permanente do mundo. A expressão espírito é utilizada, mas enquanto partícula do corpo, que se desagrega juntamente com ele no momento da morte.
Fica a pergunta: qual a finalidade da vida num mundo caótico? E Demócrito responde: a alegria. A alegria remete à tranquilidade da alma, à sua ordem, mas também  à hilariedade, ao bom humor, à boa disposição tanto quanto à saúde moral. A firmeza da alma à qual Demócrito exorta traduz o prazer sutil da relação travada consigo mesmo por um indivíduo que não teme nada e pode, portanto, na absoluta indiferença com respeito às leis, obedecer apenas a si mesmo e viver livremente.
Como em todos os filósofos da Antiguidade, Demócrito associa saber à moral. O acúmulo de conhecimento não era o fim-em-si, mas um meio de afastar do senso comum e alcançar a felicidade. Isso porque se afastar dos deuses e de suas cóleras, deixar de temer o raio e o trovão, as tempestades, os relâmpagos, os terremotos, os maremotos... Associar racionalmente causa e efeito, compreender os movimentos da alma, todos esses itinerários proclamam um saber, mas também uma ciência. Aqui, mais uma vez, a ciência encaminha a uma vida feliz.
Demócrito inicia um assunto que será recepcionado posteriormente por Epicuro: o sábio deve se esquivar dos assuntos públicos. O abderiano entende que a introdução nos assuntos públicos origina situações que conduzem o homem à perturbação. Mas não só isso. A vida doméstica também influi para a perturbação. Assim, o sábio também deve se esquivar da geração de filhos. Os filhos são fonte de temores, medos, contrariedades e aborrecimentos para os pais. Sua saúde, seu futuro, sua vida, tudo se torna um peso sobre os ombros do pai ou da mãe.
Nada temer, nem os deuses nem os homens; não se empenhar acima de suas forças; não perder a alma em prazeres cuja satisfação acarretará insatisfação futura; desejar o prazer da comunhão consigo mesmo; não procriar; em hipótese alguma se envolver nos assuntos da cidade; não impulsionar pulsões que desequilibram; visar a alegria. Em poucas palavras temos o catecismo abderiano, o manual da alegria e da felicidade para qualquer aspirante à sábio. Seja como for, o riso fomenta, em última instância, todo ideal de Demócrito.
Fonte: http://www.portalveritas.blogspot.com.br/2013/11/democrito-e-o-riso.html#more

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Gabriel Marcel: Existência como mistério

Filosofia cristã
Gabriel Marcel: Existência como mistério
Gabriel Marcel nasceu em Paris a 7 de dezembro de 1889. Sua mãe Laure, filha de banqueiros judeus, morreu quando Gabriel tinha apenas quatro anos (1893). Na sua autobiografia considera que este acontecimento foi um dos momentos de trevas da sua vida. Gabriel foi então criado pelo pai Henri, Conselheiro de Estado e diplomata, e pela tia, Marguerite Meyer, com quem o pai casaria mais tarde. No ano de 1898 Henri é enviado para a Suécia, onde Marcel passará alguns anos.
De volta a França, Gabriel Marcel começa a estudar Filosofia no ano escolar de 1905-1906, tendo-se depressa apaixonado pela “matéria”. Após terminar o ensino secundário, inscreve-se na Sorbonne, onde prossegue o estudo da disciplina. A sua tese, “Les idées métaphysiques de Coleridge dans leurs rapports avec la philosophie de Schelling”, foi apresentada em 1909 e publicada em 1971. Assistiu às aulas de Péguy, Maritain e Bergson, o professor que mais o marcou. Como era também dramaturgo, Gabriel Marcel publica em 1911 a peça “La grâce” e em 1913 “Le palais de sable”.
Após obter a agregação em Filosofia pela Sorbonne, leciona em diversos estabelecimentos do ensino secundário: Vêndome (1912), Paris (1915-1918), Sens (1919-1922), Paris (1939-1940) e Montpellier (1941).
Embora não tivesse participado ativamente na I Guerra Mundial, junta-se em 1914 à Cruz Vermelha Francesa com a missão de encontrar militares desaparecidos. Os horrores de que tem conhecimento experimentado fazem-no abandonar o seu idealismo, passando a um humanismo mais concreto. Durante a guerra, e depois dela, escreve algumas notas em que desenvolve fortes tendências existencialistas. Estes textos foram publicados em 1927 sob o título de “Journal Métaphysique”.
Terminada a guerra em 1918, casa no ano seguinte com Jacqueline Boegner, que morreria tragicamente em 1947, após doença terminal. O casal havia adotado um filho, de seu nome Jean Marcel. No ano de 1929 Gabriel Marcel converte-se ao catolicismo, recebendo o batismo no dia 23 de março desse ano.
Já a 1932 Gabriel Marcel profere uma conferência na Sociedade de Filosofia de Marselha sob o título “Positions et approches concrètes do mystère ontologique”, considerado o seu trabalho mais significativo, pois nele distingue essencial e metodologicamente entre “problema” e “mistério”, entre “ter” e “ser”. Se o “problema” visa ser resolvido sem implicações de ordem subjetiva, o mesmo não se passa com o “mistério”, que diz justamente a implicação do sujeito no perguntar que está longe de ter uma solução definitiva e irrecusável. O mesmo se passa com o “ter” e o “ser”, enquanto dimensões irredutíveis da realidade, sendo que a primeira pertence à dimensão problemática e a segunda à dimensão misteriosa. Na verdade, o homem é essencialmente um mistério.
No período que compreende a sua busca religiosa e posterior conversão, Gabriel Marcel publicará, em 1935, uma das suas maiores obras: “Être et avoir”. Obra na qual fala da existência como “encarnação”, ou seja, da existência corporal como inserção no mundo e ao mesmo tempo como abertura ao Absoluto, recuperando as categorias de “mistério” e “ser” em oposição a “problema” e “ter”, que já havia definido em “Positions et approches…”.
Terminada a II Guerra Mundial (1945), Gabriel Marcel proferiu as “Gifford’s Lectures” em Aberdeen, na Grã-Bertanha, nos anos de 1949-1950. Entre 1950 e 1951 publica “O Mistério do Ser”, em dois volumes. Deu ainda as “William James Lectures”, nos Estados Unidos da América, em 1961. Além do título de doutor “honoris causa” conferido pelas Universidades de Tóquio, Salamanca e Paul (EUA), recebeu ainda o prémio da Literatura da Academia Francesa (1948), o Grande Prémio Nacional de Letras (1958) e o Prémio Erasmo (1969).
Gabriel-Honoré Marcel morreu a 8 de outubro de 1973 de ataque cardíaco, na cidade de Paris. Teve exéquias solenes na Igreja de São Sulpício, presididas pelo Cardeal Jean Daniélou. Repousa no cemitério de Trocadero, em Paris.
Fonte:  http://www.snpcultura.org/arquivo_index.html

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A Verdade

Se observarmos a concepção grega da verdade (aletheia),
notaremos que nela as coisas ou o Ser é o verdadeiro ou a verdade. Isto é, o que existe e manifesta sua existência para nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou verdadeiro. Por esse motivo, os filósofos gregos perguntam: Como o erro, o falso e a mentira são possíveis? Em outras palavras, como podemos pensar naquilo que não é, não existe, não tem realidade, pois o erro, o falso e a mentira só podem referir-se ao não-Ser? O Ser é o manifesto, o visível para os olhos do corpo e do espírito, o evidente. Errar, falsear ou mentir, portanto, é não ver os seres tais como são, é não falar deles tais como são. Como é isso possível?


A resposta dos gregos é dupla:

1. o erro, o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas ou dos seres e surgem quando não conseguimos alcançar a essência das realidades (como no poema de Mário de Andrade, em que a garoa-neblina cria um véu que encobre, oculta e dissimula as coisas e as torna confusas, indistintas); são um defeito ou uma falha de nossa percepção sensorial ou intelectual;

2. o erro, o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é, quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não possui ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades que ele possui. Nesse caso, o erro, o falso e a mentira se alojam na linguagem e acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não correspondem à essência de alguma coisa. O erro, o falso e a mentira são um acontecimento do juízo ou do enunciado. [Juízo é uma proposição afirmativa (“S é P”) ou negativa (“S não é P”) pela qual atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P. O predicado é um atributo afirmado ou negado do sujeito e faz parte (ou não) de sua essência.]

Se eu formular o seguinte juízo: “Sócrates é imortal”, o erro se encontra na atribuição do predicado “imortal” a um sujeito “Sócrates”, que não possui a qualidade ou a propriedade da imortalidade. O erro é um engano do juízo quando desconhecemos a essência de um ser. O falso e a mentira, porém, são juízos deliberadamente errados, isto é, conhecemos a essência de alguma coisa, mas deliberadamente emitimos um juízo errado sobre ela.

O que é a verdade? É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas ou formuladas. Qual a condição para o conhecimento verdadeiro? A evidência, isto é, a visão intelectual da essência de um ser. Para formular um juízo verdadeiro precisamos, portanto, primeiro conhecer a essência, e a conhecemos ou por intuição, ou por dedução, ou por indução. A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas; exige, portanto, que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos sentidos. Em outras palavras, a verdade sendo o conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária, enquanto as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época, de sociedade para sociedade, de pessoa para pessoa. Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano das opiniões, nunca alcançaremos a verdade.

O mesmo deve ser dito sobre nossas impressões sensoriais, que variam conforme o estado do nosso corpo, as disposições de nosso espírito e as condições em que as coisas nos aparecem. Pelo mesmo motivo, devemos ou abandonar as idéias formadas a partir de nossa percepção, ou encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas. No primeiro caso, somente o intelecto (espírito) vê o Ser verdadeiro. No segundo caso, o intelecto purifica o testemunho sensorial. Por exemplo, posso perceber que uma flor é branca, mas se eu estiver doente, a verei amarela; percebo o Sol muito menor do que a Terra, embora ele seja maior do que ela. Apesar desses enganos perceptivos, observo que toda percepção percebe qualidades nas coisas (cor, tamanho, por exemplo) e, portanto, as qualidades pertencem à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas.

Quando, porém, examinamos a idéia latina da verdade como veracidade de um relato, observamos que, agora, o problema da verdade e do erro, do falso e da mentira deslocou-se diretamente para o campo da linguagem. O verdadeiro e o falso estão menos no ato de ver (com os olhos do corpo ou com os olhos do espírito) e mais no ato de dizer. Por isso, a pergunta a dos filósofos, agora, é exatamente contrária à anterior, ou seja, pergunta-se: Como a verdade é possível? De fato, se a verdade está no discurso ou na linguagem, não depende apenas do pensamento e das próprias coisas, mas também de nossa vontade para dizê-la, silenciá-la ou deformá-la. O verdadeiro continua sendo tomado como conformidade entre a idéia e as coisas – no caso, entre o discurso ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados -, mas depende também de nosso querer.

Esse aspecto voluntário da verdade torna-se de grande importância com o surgimento da Filosofia cristã porque, com ela, é introduzida a idéia de vontade livre ou de livre-arbítrio, de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre relato e fato, mas também da boa-vontade ou da vontade que deseja o verdadeiro.

Ora, o cristianismo afirma que a vontade livre foi responsável pelo pecado original e que a vontade foi pervertida e tornou-se má-vontade. Assim sendo, a mentira, o erro e o falso tenderiam a prevalecer contra a verdade. Nosso intelecto ou nosso pensamento é mais fraco do que nossa vontade e esta pode forçá-lo ao erro e ao falso.

Essas questões foram posteriormente examinadas pelos filósofos modernos, os filósofos do Grande Racionalismo Clássico, que introduzirão a exigência de começar a Filosofia pelo exame de nossa consciência – vontade, intelecto, imaginação, memória -, para saber o que podemos conhecer realmente e quais os auxílios que devem ser oferecidos ao nosso intelecto para que controle e domine nossa vontade e a submeta ao verdadeiro.

É preciso começar liberando nossa consciência dos preconceitos, dos dogmatismos da opinião e da experiência cotidiana. Essa consciência purificada, que é o sujeito do conhecimento, poderá, então, alcançar as evidências (por intuição, dedução ou indução) e formular juízos verdadeiros aos quais a vontade deverá submeter-se.

Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:

1. a verdade é conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição, dedução ou indução);

2. a verdade se exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser das coisas ou com os fatos;

3. o erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);

4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os enganos da percepção e da memória;

5. a causa do falso e da mentira, para os modernos, também se encontra na vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser controlada por ele;

6. uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular, individual, instável e mutável;

7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com capacidade para o verdadeiro.

Quando os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia (ou entre a idéia e o ideado), não estão dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia, um papel carbono, um “xerox” da coisa verdadeira. Idéia e coisa, conceito e ser, juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia. O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa, conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras. Como disse um filósofo, a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce. A idéia é um ato intelectual; o ideado, uma realidade externa conhecida pelo intelecto.

A idéia verdadeira é o conhecimento das causas, qualidades, propriedades e relações da coisa conhecida, e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário. Quando o pensamento conhece, por exemplo, o fenômeno da queda livre dos corpos (formulado pela física de Galileu), isto não significa que o pensamento se torne um corpo caindo no vácuo, mas sim que conhece as causas desse movimento e as formula em conceitos verdadeiros, isto é, formula as leis do movimento.
Fonte: http://www.portalveritas.blogspot.com.br/2013/04/a-verdade.html#more
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.  Ed. Ática: São Paulo, 2000.