quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Rousseau e a liberdade


Pedro Soares de Oliveira neto*
* Licenciado e Bacharel em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina – pedro_aimar@hotmail.com

Qual a origem da desigualdade entre os homens? Será ela sancionada pela lei natural? Com o intuito de responder a estas questões — propostas, em 1753, pela Academia de Dijon — o pensador Jean-Jacques Rousseau, afastando-se da atividade febril dos homens em sociedade, buscou o silêncio do campo. Isolando-se em uma propriedade rural, longe dos confortos da cidade e próximo aos apelos da natureza, tendo sob os olhos o ritmo lento e imemorial em que crescem as plantas e em que procriam, vivem e desaparecem os animais, tentou reviver mentalmente o estado primitivo da espécie humana, antes do advento das primeiras comunidades organizadas. Deste esforço imaginativo e criativo resultou um documento que serve como matéria de reflexão e inspiração para todos os que procuram uma saída para as desgraças auto-infligidas pelo próprio homem: o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Animal entre os animais, a vida do homem situava-se como que fora do tempo, em uma completa comunhão com a natureza, seguindo o movimento uniforme de forças inelutáveis. Assim como o animal, era guiado seguramente pelos instintos de que era dotado, aptidões plenamente suficientes para suprir as poucas necessidades que provava: a alimentação, o impulso à procriação, o singelo amor-de-si que ditava a cada um a preservação da própria vida. Descrevendo este estágio da humanidade, que bem poderia ser definido como a sua infância, Rousseau diz:
“Os únicos bens que [o homem] conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome; digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, e o conhecimento da morte e de seus terrores é uma das primeiras aquisições que o homem fez, aos se distanciar da condição animal” (Discurso sobre a desigualdade, Primeira Parte, §18).
Mas, de que modo ocorreu este distanciamento, este desligamento do fluxo natural que permitiu o despertar para esta condição que lhe era peculiar, oferecendo ao homem a imagem e a previsão de sua destruição iminente na morte? Pois o animal não sabe o que é morrer, dado que não pode destacar-se do momento em que vive simplesmente, seguindo suas puras disposições naturais; ele não pode deslocar-se, como o homem, com o auxílio da imaginação, no tempo e no espaço. O ser natural é um com a Natureza em seu conjunto, não podendo separar-se, enfim, em um eu que o distinga de um outro. Segundo Rousseau, é uma faculdade especificamente humana, esta que lhe permite fugir à corrente dos instintos, e o nome que lhe dá é liberdade. A liberdade, então, para Rousseau, é como que uma falha ou um desvio que provoca no homem a sua saída para fora dele mesmo: é a condição, não apenas de seu progresso no aperfeiçoamento de suas faculdades mentais, mas também de sua infelicidade no afastamento do paraíso terrestre em que se encontrava inicialmente.
Neste ponto de sua trajetória, o ser humano assume a sua história e pode dispor tanto de seu passado (pelo uso da memória) como de seu futuro (no qual é capaz de projetar-se com as ações que imagina). Mas para que isso ocorresse foi preciso que ele, partindo de uma vivência que se resolvia quase que imediatamente em uma pura exterioridade, em um contato direto com as coisas (e com os outros indivíduos) que não deixava vestígios, se desdobrasse em uma consciência cada vez mais complexa e plena do ambiente que o circundava.
Desde então a vida em comum se tornou para ele algo indispensável, e as relações familiares fortaleceram cada vez mais os laços de amizade e de simpatia entre homens, mulheres e seus filhos. Amparados uns nos outros, conheceram um período de segurança e uma abundância diversa daquela que gozavam separados no estado de natureza  primitivo. Capazes de comparar as impressões anteriores com as que viviam presentemente, perceberam que as sensações podiam ser mais doces ou mais amargas, dependendo da circunstância em que se encontravam. Isto os levou a desejar prolongar sempre mais os estados de prazer, guiados pela miragem de uma perfectibilidade sempre crescente. Esta virtude de abstrair um ideal e tentar conformar a realidade a esta idéia, segundo Rousseau, foi a causa de uma busca incessante por novas formas, cada vez mais refinadas, de aplicar as faculdades latentes no homem. Foi também a partir deste momento, em que cada um reconheceu o outro diante de si como um igual, que a possibilidade (e também a necessidade) de uma linguagem se fez sentir.
Por outro lado, à medida que cada indivíduo desenvolvia tais faculdades, o desejo de reconhecimento por seus iguais tornou-se difícil de satisfazer. A necessidade de imposição de sua própria existência sobre a atenção dos demais fez que o amor-de-si (voltado para a simples preservação de cada um) degenerasse em uma supervalorização egoísta no amor-próprio. A esta altura o homem estava já completamente acorrentado àquelas relações sociais que pareciam, a princípio, dar uma dimensão nova e positiva à sua existência.
A afirmação da própria individualidade foi marcada, em seguida, por um impulso para apropriar-se de tudo, seja dos bens materiais, seja da vida dos outros seres. Rousseau comenta esta tendência nascente com palavras sombrias:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando ou buracos, tivesse gritado a seus semelhante: ‘Fugi às palavras deste impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todo, e que a terra não é de ninguém.” (Discurso sobre a desigualdade, Segunda Parte, §1).
Estabelecido o direito de propriedade, mostrou-se evidente que forças individuais não poderiam manter tais posses. Sem um poder coercitivo abrangente, nada podia impedir que bandos de invasores se apossassem violentamente de qualquer bem (terras, colheitas, animais, filhos e mulheres etc.) acumulado nas mãos de um único proprietário indefeso. Rousseau afirma claramente que a formação de um Estado com poder absoluto sobre todos os súditos teria sido um estratagema urdido por aqueles que tinham acumulado um grande quantidade de bens e que, por isto mesmo, eram os que mais tinham a temer em tais circunstâncias.
Podemos questionar agora a aparente contradição do conceito de liberdade em Rousseau. Por um lado, significa a expulsão de um estado de natureza idílico, uma perversão do animal no homem. Por outro, porém, ela é aquilo que ele perdeu ao abdicar de seu direito natural, em função de uma vida social organizada em torno do poder absoluto da soberania. No entanto, lembremos que, apesar de ser a causa de seu rompimento com a natureza, a liberdade é ela mesma um dom natural no ser humano. Todas as paixões, desejos, abusos derivados da imperfeição obrigatória das leis, as aquisições das artes e das ciências, assim como as demais atividades supérfluas que se multiplicaram com o convívio social são apenas desenvolvimentos de potencialidades que já se encontravam no homem. É verdade que o excesso de todas estas coisas representam algo de nocivo para a humanidade, mas Rousseau parece indicar que, mais uma vez (já que um retorno ao estado de natureza original seria impossível), o homem poderia exercer a sua liberdade, dando um novo salto em sua história; poderia sacudir de seus ombros o jugo dos déspotas que traíram aqueles que depositaram neles sua confiança e seu poder. Rousseau aponta decididamente para a revolução como um meio de refazer sobre outras bases o contrato social deturpado, nas raízes, pelos senhores. Porém, logo que uma nova ordem fosse estabelecida, ele previa que esta inevitavelmente se deterioraria em seguida, por força das contingências do mundo em que vivemos. Assim, o único modo de manter viva a liberdade dos cidadãos seria a possibilidade de, guiados por uma assembléia perenemente ativa, aperfeiçoar sem cessar as condições de toda a sociedade, promovendo não só a igualdade de direitos, mas a igualdade de posses para todos. Depois das previsões de Rousseau, efetivamente, mais de uma revolução foi traída, e homens como Trótski, por exemplo, que partilharam de sua visão ao propor o conceito de revolução permanente, foram esmagados mais de uma vez. Não importa: o homem foi capaz se adaptar para a sobrevivência durante o longo percurso da espécie; por que não seria novamente capaz de projetar e fazer brotar, em outros terrenos, aquele germe de liberdade que a natureza nele depositou como uma mãe benfazeja?
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Fonte: http://www.consciencia.org/rousseau-e-a-liberdade
Referência Bibliográfica:
ROUSSEAU, Jacques. A Origem da Desigualdade Entre os Homens. Ed. Escala. São Paulo, 2007.