quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A LIBERDADE E A FILOSOFIA

 
Sobre este autor(a)
Enfermeira e Filósofa. Especialista em Bioética e Enfermagem em UTI. Leciona Filosofia para o Ensino Médio no Estado de São Paulo e pretende lecionar Bioética e Pediatria em escolas técnicas de enfermagem. Atualmente cursa Psicopedagogia Clínica. Interessa-se por ficção, bioética, ética, política e ...

A liberdade é motivo para reflexão de filósofos desde muito antes de Sartre, tanto na área do direito, especificamente, como na tradição filosófica em si.
Na declaração dos direitos do homem e do cidadão consta que liberdade individual caracteriza-se pelo poder de "fazer tudo o que não for nocivo a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada um não tem outros limites além daqueles que asseguram aos outros membros da sociedade dos mesmos direitos" (Vicente, 1985, v. 07, p. 2159).
O interesse pelo tema da liberdade humana vem permeando os estudos dos filósofos desde seu princípio. Em Platão podemos perceber que a liberdade individual é capaz de atribuir mérito ou demérito, segundo os atos realizados pelo próprio indivíduo, sendo que as leis são o peso utilizado para denominar o mérito ou não. Podemos ainda apontar o conceito de liberdade assegurado pelos estóicos (Vicente, 1985, v. 5) de que seria uma adesão espontânea à necessidade natural.
Na Idade Média os limites da liberdade eram definidos segundo conceitos elaborados partindo do conflito razão X teologia. Então eram elaborados basicamente pela religião predominante na Europa, o cristianismo.
Continuando a linha de análise, na modernidade temos o conceito de Liberdade elaborado por Descartes, sendo que ele apontou para o que denominou liberdade de indiferença, caracterizada pela "adesão sem razão a uma de duas contrárias igualmente possíveis" (Vicente, 1985, v.7, p. 2160), e afirmou ser esse o grau mais baixo de liberdade humana. Podemos neste ponto perceber a dicotomia travada entre Teologia X Razão, em que Descartes acredita que o que é feito sem o uso da razão não assegura a liberdade completa.
Leibniz denominou "toda a espontaneidade racional" de liberdade (Vicente, 1985, v.7, p. 2137), desde que não houvesse a necessidade lógica. Assim, agir por estar inclinado e não necessitado seria agir livremente.
Analisando ainda os diversos conceitos filosóficos acerca da liberdade, temos de Spinoza a descrença no conceito de liberdade, sendo que no ponto de vista do filósofo, o conceito de liberdade não passa de uma ilusão produzida pela ignorância das verdadeiras causas. Para Spinoza, a liberdade verdadeira não é habilidade de escolher algo em detrimento de outro, mas sim a habilidade de agir de acordo com a natureza de uma pessoa e agir sozinha (Bergman, 2004). Deus é livre por que é infinito, já para os humanos, a liberdade consiste em "entender nossos desejos e nosso lugar no universo como uma causa de deus" (Bergman, 2004, p. 55).
Kant definiu a liberdade como um postulado da razão prática, caracterizado pelo imperativo categórico. A declaração dos direitos do homem e do cidadão certamente baseou-se no conceito kantiano de liberdade:"Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se mediante tua vontade a lei universal da natureza" (Kant, 1785 apud Marcondes, 2007, p.123).
Como é possível averiguar, o tema liberdade tem sido estudado por diversas escolas filosóficas em todo o decorrer da própria filosofia.

REFERÊNCIAS

BERGMAN, G. Filosofia de banheiro: Sabedoria dos maiores pensadores mundiais para o dia-a-dia. Tradução: Caroline Kazue Ramos Furukawa. São Paulo: Madras, 2004.
KANT, 1785 apud JAPIASSÚ, H e MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006.
SILVA, AS. O conceito de Liberdade segundo a teoria existencialista de Sartre. Monografia. Brasília: Universidade Católica de Brasília/UCBV, 2010. 42 p.
VICENTE, O (org.). Enciclopédia Didática de Informação e Pesquisa Educacional. v. 5. 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Iracema, 1985.
VICENTE, O (org.). Enciclopédia Didática de Informação e Pesquisa Educacional. v. 7. 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Iracema, 1985.

sábado, 4 de agosto de 2012

Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana

Sed dignitaten dicit principaliter retione formae
 São Boaventura
 Prof. André Marcelo M. Soares, Ph.D.*
O conceito de dignidade é um dos mais relevantes para as reflexões ética, política e jurídica. Por esta razão, a sua definição filosófica é uma tarefa árdua. A dignidade não é algo que se aplica exclusivamente ao ser humano, mas, quando se fala em dignidade humana, é impossível deixar de lado o conceito de pessoa, que provoca uma variedade de questionamentos de ordem ontológica, antropológica e ética[1]
A expressão dignidade da pessoa é a combinação de dois substantivos, na qual a dignidade figura como termo valorativo aplicado a um sujeito que necessita se firmar como realidade ontológica (pessoa). Isto nos permite, de antemão, constatar que é possível refletir sobre o seu significado por dois caminhos: o ontológico e o ético. Através da via ontológica, pode-se conhecer uma realidade específica entre outras, que é a de ser pessoa. A via ética, por sua vez, permite pensar as razões alegadas para dizer que alguém é digno[2]
A origem etimológica da palavra pessoa encontra-se no termo grego prosôpon, que, longe de possuir um sentido ontológico, se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais. Apesar de Platão (cerca de 427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) aplicarem os conceitos de substância, natureza e essência, com seus respectivos matizes, ao homem, o pensamento grego desconhecia a realidade de ser pessoa. Ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão antropológica a partir de uma perspectiva cosmológica, segundo a qual o ser humano era compreendido como a realidade natural mais elevada[3]. Todavia, apesar de ser um animal racional, portador de logos e possuidor de uma alma intelectiva, não só vegetativa ou sensitiva como nos demais seres da natureza, nem os gregos e nem os romanos conseguiram perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser pessoa
É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos. Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional a sua capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.
No cristianismo, o conceito de pessoa teve um sentido teológico, por se aplicar primeiramente às pessoas divinas. A seguir, foi empregado para definir o ser humano, até então concebido simplesmente como homem[4]. Para o pensador franciscano Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524), para o qual a pessoa é “uma substância individual de natureza racional”[5]. De acordo com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com mais profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. Deste modo, a pessoa “define-se pela substância ou pela relação; se se define pela relação, a pessoa e a relação serão conceitos idênticos”[6]. Em outras palavras, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural e, portanto, inerente a sua própria natureza[7]
A definição de Boécio, seguida por muitos outros filósofos, tem como núcleo o conceito aristotélico de ousia (ou substantia), utilizado fundamentalmente para definir as coisas naturais. Nesta concepção, a pessoa, tal como as demais coisas, é concebida como hypóstasis (ou suppositum), embora mais digna por ser dotada de razão. Para o Doctor Seraphicus, quando se trata das pessoas divinas, esta noção pode parecer estranha. Afinal, de forma alguma é possível interpretar as pessoas divinas como coisa. É por este motivo que ele utiliza o conceito de relação para referir-se, por analogia, à pessoa humana. O fato de o homem ser concebido como imago Dei significa que, além de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu criador. 
Segundo Boaventura, “a pessoa é a expressão da dignidade e da nobreza da natureza racional. E esta nobreza não é uma coisa acidental, mas pertence à sua essência”[8]. Cada homem, em particular, foi criado por Deus não seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina[9]. É neste fato que repousa a dignidade humana
A partir do século XVIII, sobretudo com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade. De acordo com Kant, a dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura capaz de se submeter livremente as leis morais que são reconhecidas como procedentes da razão prática[10]. Tal capacidade se deve ao fato do ser humano possuir, além de uma dimensão fenomênica, que o submete às leis físicas que regulam o universo e a ele mesmo, uma dimensão noumênica, que o torna um ser subjetivo, livre, constituído por uma interioridade e por uma consciência moral. Esta dimensão é a que lhe possibilita ser autônomo, isto é, um sujeito moral que reconhece o valor e a obrigatoriedade das normas que ele mesmo se impõe, sendo fiel ao imperativo categórico[11].
Para os pensadores da pós-modernidade, a dignidade humana nada tem a ver com os esquemas assinalados anteriormente. Nem as qualidades intelectuais (a razão), nem os pressupostos metafísicos (ontologia do ser humano) e nem a capacidade moral (autonomia) fundamentam a dignidade humana. Ela resultaria, portanto, de uma ação institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático, decidiriam de forma contingente e convencional (o único modo possível) o grau de sua utilidade ou eficácia para resolver conflitos sociais. 
Segundo o neopragmatismo pós-moderno de Richard Rorty (1931-2007), os mecanismos da emotividade humana (especialmente a compaixão) explicam mais claramente como as abstrações racionalistas transformam em tendência social o reconhecimento de uma dignidade que converte em imoral o sofrimento desnecessário a quem se convencionou considerar como membro desta sociedade[12]. Os ingredientes básicos da perspectiva rortyana são: a contingência da dignidade humana, por um lado e o marco emotivista, onde se situa a raiz da defesa da dignidade, por outro. 
Frente à racionalização do ser humano no pensamento grego clássico, à ontologização da pessoa na tradição cultural cristã e jusnaturalista e à autonomia do indivíduo na filosofia moderna germânica, o filósofo norte-americano Richard Rorty propõe um retorno ao pensamento de David Hume (1711-1776), segundo o qual os sentimentos e a utilidade social constituem o motor da ação moral e a base de qualquer direito humano[13]
Interpretando os diferentes modelos de dignidade, pode-se afirmar que o modelo grego clássico, o kantiano moderno e o neopragmático pós-moderno foram elaborados a partir de um tipo de reflexão denominada de fundamentação condicionada, considerando que a afirmação da dignidade humana depende do desenvolvimento e execução de determinadas qualidades intelectuais e morais da pessoa. No caso do neopragmatismo, os critérios escolhidos são os de utilidade social, conveniência e capacidade. Já a perspectiva ontológica, própria da tradição cristã e do jusnaturalismo, oferece uma fundamentação incondicionada, na qual a dignidade não depende de fatores externos ao ser humano, nem sequer do exercício de faculdades intelectuais ou morais, mais desenvolvidas nos adultos. Nesta perspectiva, a dignidade humana não está condicionada e não se sujeita às convenções jurídico-sociais.
Fonte: http://www.presbiteros.com.br

* Filósofo, mestre e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA – Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).
[1] Cf. ADORNO, R. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998.
[2] Cf. WOJTILA, K. Metafisica della persona. Milano: Edizioni Bompiani Il Pensiero Occidentale, 2003; MOUNIER, E.  Il personalismo. Roma: Editrice AVE, 1999; VV.AA. Persona e personalismo. Aspetti filosofici e teologici. Padova: Gregoriana, 1992.
[3] Cf. FRAILE, G. Historia de la filosofia. Vol. I, Madrid: BAC, 1990, p. 370-381, 456, 464, 468-470, 487-504.
[4] Cf. JONES, D.A. The soul of the embryo: an enquiry into the status of the human embryo in the christian tradition. London/ New York: Continuum, 2004, p. 125-140.
[5] II Sent., d. 25, a. 2, q. 2 ad 4.
[6] MTr, q. 2, a. 2, n. 9. (V, 66s).
[7] Cf. MERINO, J.A. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993, p. 71.
[8] II Sent., d. 3, p. 1, a. 2, q. 2ad 1 (II, 107).
[9] Cf. RAPONI, S. Il tema dell’immagine-somiglianza nell’antropologia dei padri. Roma: Teresianum, 1981; RUIZ DE LA PEÑA, J.L. Immagine di Dio: antropologia teologica fondamentale. Roma: Borla, 1992; BÜHLER, P. Humain à l’image de Dieu. La théologie et lês sciences humaines face au problème de l’antropologie. Genève: Labor et Fides, 1989; ANDERSON, R. On being human. Essays in theological anthropology. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.
[10] Cf. HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 179-189.
[11] Cf. KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins fontes, 2002, p. 33-35; HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 172-174; PASCAL, G. O pensamento de Kant. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 108-126.
[12] Cf. RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 59; RORTY, R. Derechos humanos, racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S; HURLEY, S. De los derechos humanos. Madrid: Trotta, 1998, p. 117-136.
[13] Cf. CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66-68.