quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A lei moral de Kant e a realidade sócio-política brasileira

A lei moral de Kant e a realidade sócio-política brasileira
Autor: Wesley Wadim Passos Ferreira de Souza
Fonte: dontotal


RESUMO: Este pequeno texto traça um paralelo entre alguns aspectos importantes da filosofia kantiana (contidos na Critica da Razão Prática e na Doutrina da Virtude) e a realidade da política e da sociedade brasileiras. Pretende-se demonstrar o quanto estamos distantes dos ideais kantianos nos dias atuais e que uma das causas dos grandes problemas experimentados no Brasil de hoje é uma profunda crise moral.

PALAVRAS-CHAVE: lei moral; Kant; política; sociedade; brasileira

1 Introdução

Em tempos como os vividos atualmente no Brasil, não me parece nem um pouco desnecessário retomar a questão ética no cenário sócio-político nacional.
Freqüentemente vêm à minha mente as seguintes indagações: _ Aqueles que criticam os políticos nacionais estariam aptos a comportar-se de forma diferente se exercessem os mesmos cargos? _Seria possível acreditar que um novo político empossado em fevereiro de 2007 teria ambiente para adotar comportamentos próximos do rigorismo Kantiano? Ou ainda: _ Mesmo alguém, seja consumidor ou empresário, seja servidor público ou empregado da iniciativa privada, seja jovem ou seja idoso, adotaria comportamento, pelo menos semelhante ao preconizado por Kant em sua conhecida obra “Critica da Razão Prática?

Pois, bem. È evidente que as perguntas formuladas acima não encontrarão resposta ao final do texto, até porque são revestidas de intensa subjetividade.
Vale dizer: somente quem vivesse a situação descrita poderia dar sua resposta própria. Porém, os princípios da moral Kantiana poderiam oferecer-nos aparato para adotar comportamentos mais próximos dos preconizados pela Carta da República em seu artigo 1º, tais como a dignidade da pessoa humana e pluralismo político, permitindo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, onde fosse efetivamente possível a redução das desigualdades sociais e, talvez não a erradicação, mas a diminuição da pobreza e da marginalização.

Antes de adentrarmos especificamente os conceitos e princípios dados pela filosofia Kantiana, procuraremos expor um pequeno panorama das situações mais comumente encontradas na prática política nacional, as quais serão confrontadas com a hermética moral do filosofo Alemão.

Os recentes episódios ocorridos no parlamento brasileiro e fartamente expostos pela mídia demonstram a total falta de compromisso com interesses coletivos. Nossos representantes no parlamento parecem preocupar-se tão somente com a própria manutenção no poder e obtenção de vantagens pessoais, conduzindo-se por uma inclinação devassa que chega a causar rubro no mais despudorado dos facínoras.

Para comprovar tal conclusão basta lançar de soslaio os olhos nos “mensalões”, “mensalinhos”, sangue sugas e nos escândalos envolvendo a obtenção de dossiês, fraudes em concursos públicos, emprego de parentes e outros apadrinhados nos cargos públicos, cujo acesso deveria ser franqueado aos cidadãos que demonstrassem maior preparo técnico.

Enfim, essa sorte de mazelas que parece demonstrar que o povo brasileiro vive num enorme carnaval de bandalheiras, numa incessante orgia de falcatruas que se repetem com freqüência tal que, cerca de dois ou três meses do último escândalo, já não se tem mais lembrança dos detalhes dos primeiros, haja vista a intensidade do escândalo mais recente, no mais das vezes bastante superlativos em sordidez e dimensão.

Essa realidade assaz desesperadora, ao mesmo tempo em que desencanta e desestimula, permite que possamos refletir sobre as fontes dos infortúnios brasileiros, entre as quais me parecem estar uma crescente crise moral.

Dessarte, sem o objetivo de esgotar o tema, passarei a tecer breves comentários sobre a moral delineada por um dos mais pungentes filósofos ocidentais; Immanuel Kant

2 A Lei Moral de Kant e o conceito de boa vontade

Immanuel Kant nasceu em Konigsberg, Alemanha, no ano de 1724.
Sua vida não foi permeada de grandes acontecimentos, haja vista que somente uma única vez deixou sua cidade natal.

Extremamente dedicado aos estudos e à docência, diz-se que adotava uma rotina quase religiosa no que tange às atividades diárias, tendo inclusive hora certa para deixar sua casa rumo a um passeio pela praça local.

Se no que tange aos costumes sua vida era simples, no âmbito acadêmico não se pode dizer o mesmo de Kant. Sua produção intelectual foi punjante.

Entre os diversos opúsculos escritos por Kant, foram elaboradas três críticas (a da razão Pura, a da razão prática e a do Juízo), cujos aspectos mais relevantes para a análise proposta na introdução deste trabalho serão ressaltados a seguir.

A primeira crítica de Kant intitulava-se “Crítica da Razão Pura”, a segunda traz o titulo “Crítica da Razão Prática” e é nesta obra que encontramos os conceitos que desejamos por em destaque neste texto.

Esta segunda crítica se subdivide, assim como a primeira, em uma analítica, que é a regra da verdade, e numa dialética, que é a exposição e a solução da aparência nos juízos da razão.
A filosofia Kantiana vai se ocupar então de definir o que vem a ser uma boa vontade e, para tanto, deixa extreme de dúvida que esta boa vontade não é aquela que decorre de boas inclinações, ao contrário, agir por dever para Kant é diferente de agir conforme o dever.

No primeiro caso, mesmo não estando inclinado para uma conduta virtuosa o indivíduo procura praticá-la dentro do que entende ser uma máxima que pode ser erigida a regra universal, ou seja, que valha para todos os homens, no segundo caso, (agir conforme o dever) o indivíduo tendo inclinações para condutas virtuosas as pratica, de modo que seu móvel (impulso subjetivo) já previamente estava dirigido a algo que pode ser considerado bom.

Para Kant agir moralmente não é agir por causa de boas inclinações, dado que estas inclinações são sempre subjetivas e podem variar de pessoa para pessoa, mas sim agir segundo regras necessárias e universais, mesmo não estando inclinado para isto. É agir segundo imperativos de ordem objetivo (que têm valor para o bem da coletividade).

Desta breve análise, retira-se a formula geral do imperativo categórico Kantiano: “Procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne em lei Universal”.

Kant diferencia este imperativo categórico dos imperativos hipotéticos, pois estes últimos dizem respeito às ações necessárias para alcançar um certo fim, ou seja de forma condicionada, por exemplo, a habilidade e a prudência.

Com a habilidade nos propomos a alcançar uma finalidade de maneira mais econômica. Com a prudência evitamos dissabores, buscamos alcançar a felicidade.

A moralidade, porém trata-se de um imperativo categórico, de uma feita que mesmo que não alcancemos a felicidade ou o fim colimado, agindo moralmente estaremos cumprindo um dever que põe em relevo, não meu interesse pessoal, mas o interesse de toda a coletividade. Segundo Kant o imperativo da moralidade não dita conselhos ou regras, dita leis.

“De fato só a lei implica em si o conceito de necessidade incondicionada, verdadeiramente objetiva e, conseqüentemente, válida para todos, e os mandamentos são leis a que é mister obedecer, isto é, devem ser seguidas, mesmo quando contrariam a inclinação”. (Crítica da Razão Prática, p.78)


Merece destaque o fato de que Kant tem consciência de que todo ato humano é dirigido para um fim, porém, o que ele defende é que uma ação moral, não pode ser dirigida para fins subjetivos, pois esses evidentemente variariam de pessoa para pessoa. Deve-se buscar , pois, um fim objetivo e, segundo ele, o único fim objetivo possível é o homem.

O homem para Kant é um fim em si mesmo, logo, não pode ser utilizado como instrumento. Daí decorre a segunda formulação do imperativo categórico de Kant:

“Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio” (p. 92)


E da aproximação da primeira formulação do imperativo com a segunda deriva a conclusão de que o homem não poderia ser um simples objeto da legislação universal imposta pela lei moral, sendo necessário que ele seja seu próprio autor.

Assim: a lei moral não pode ser recebida de fora, é preciso que ela brote do interior do ser humano. Vem daí o terceiro princípio da moralidade kantiana: “a idéia da vontade de todo ser racional considerada como promulgadora de uma legislação universal. (p.94)

Trata-se do princípio da autonomia da vontade. Obedecemos a lei moral porque somos nós mesmos formuladores dela. A vontade dá-se a si mesma a sua lei: ela é autônoma.
A autonomia é para Kant, pois, o princípio supremo da moralidade, já que implica, ao mesmo tempo, a vontade de uma legislação universal e o respeito à pessoa humana que lhe deve a sua dignidade.

Dessarte, uma vontade é boa quando convertida em lei universal não pode contradizer-se a si mesma.

3 A metafísica dos costumes

A Metafísica dos costumes é o texto que completa a Crítica da Razão Prática.
Tal escrito tem relevância para esta pequena explanação na medida em que através dele Kant elenca uma série de princípios que podem ser utilizados na aplicação da legislação moral à experiência (vivência cotidiana). Trata-se de uma forma de aplicar à realidade concreta dos costumes os princípios a priori apurados na análise da lei moral.

O objetivo dessa metodologia é mostrar como “se pode dar acesso no espírito humano às leis da razão pura prática, e fazê-las influir nas máximas deste espírito, ou seja, fazer da razão objetivamente prática uma razão subjetivamente prática”.

Kant elaborou uma série de escritos sobre a doutrina da virtude, onde trabalhou temas como a mentira, a difamação, o orgulho, a inveja entre outros.

Em todas as suas abordagens uma marca característica pode ser encontrada: o seu intenso rigor com os desvios morais.

O presente texto não tem a pretensão de explorar cada tratado kantiano sobre estes temas, porém, algumas análises mais conhecidas da obra do filósofo alemão podem ser colocadas em confronto com a realidade brasileira. Vejamos:

4 Paralelo entre a moral definida por Kant e a realidade brasileira

Primeiramente é preciso destacar que esta comparação está sendo feita em relação à realidade brasileira, por força da necessidade de limitar o texto a um quadro mais próximo do leitor, porém, não só ao ambiente doméstico podemos perceber a atualidade dos estudos de Kant, basta verificar o que vem acontecendo na ordem internacional, com a intervenção dos Estados Unidos da América no Iraque.

O projeto de paz universal Kantiano, que poderia se consolidar sob a batuta da ONU, foi lançado por terra pela Nação mais bem armada do planeta.

Nada obstante, como já frisado acima, não precisamos sair do território nacional para perceber que não vivemos nada que se aproxime da moral estudada e preconizada por Immanuel Kant.

Na política brasileira as inclinações individuais (os desejos, os instintos) dos “representantes” do povo são cada vez mais colocados em relevo, em detrimento do interesse coletivo, e sem qualquer sombra de dúvida, as máximas subjetivas vêm se aflorando e se tornando realidade com cada vez menos pudor.

Basta percebemos que mesmo quando se atua com fundamento em algum ordenamento jurídico, o móvel das ações tem que ver com o interesse particular do agente. Tal situação tem gerado, com muita freqüência, um distanciamento entre os conceitos de legalidade e de moralidade. Distanciamento este bastante perceptível em procedimentos licitatórios que formalmente estão adequados às normas jurídicas, mas visam ao enriquecimento sem causa de algum grupo ligado ao ordenador da despesa.

Sobre a maledicência e difamação Kant traz as seguintes conclusões:

“Divulgar acintosamente uma coisa que denigra a honra de outrem, mas não cai sob a jurisdição dos tribunais e que aliás pode ser verdadeira, é diminuir o respeito à humanidade em geral, de modo a lançar, em, última análise, a sombra do descrédito sobre a nossa própria espécie, e a fazer da misantropia ou do desprezo o modo de pensar dominante, ou a embotar o senso moral pelo espetáculo freqüente do vício, e a habituar-se a isso. Portanto, em lugar de auferir um prazer malicioso da revelação das faltas alheias, com vistas a assegurar-se assim a reputação de um homem de bem, ou , pelo menos de um homem que não é pior do que os demais, é dever de virtude lançar sobre as faltas dos outros o manto da filantropia, não só moderando os nossos juízos, como deixando de externá-los; pois o exemplo do respeito que tributamos aos outros pode incitá-los, por sua vez, a fazer esforço para se tornarem dignos dele. Por esta razão, o vezo de espionar os costumes dos outros é já em si uma curiosidade ofensiva, a que todo homem tem o direito de opor-se como a uma violação do respeito que lhe é devido.” (Doutrina da Virtude, p. 48)

Percebe-se através deste excerto que o respeito à pessoa humana sendo absoluto, deve nos dissuadir de lançar sobre os outros qualquer julgamento e condenação. Nada obstante, o que vemos com freqüência nos meios de comunicação brasileiros são conclusões açodadas sobre a conduta alheia, conclusões que, aliás, acabam por pressionar indevidamente os órgãos julgadores a pretexto de estarem divulgando a opinião pública.

Como se não bastasse, os programas que mais atraem a atenção do público são aqueles em que a vigilância dos costumes dos outros é proporcionada pela reunião de pessoas em uma casa (ou outro prédio qualquer) onde são submetidas a determinadas provas em busca de certo prêmio. Tanto faz que sejam pessoas conhecidas do público, ou enormes desconhecidos, o que interessa é verificar como procedem e realizar o julgamento de seus comportamentos através de uma votação realizada pela rede mundial de computadores ou pelo telefone. Muito dinheiro para a empresa de televisão e nada de proveito para os espectadores, a não a ser a “satisfação” de se sentir seus defeitos compartilhados pelos demais.

Esta situação (talvez infelizmente) não é verificada na política, pois os cidadãos (de memória muito curta) perdoam facilmente os desvios de conduta de seus eleitos, muitas vezes, sequer querem tomar conhecimento de tais comportamentos desviados.
Sobre a mentira Kant possui um interessante trabalho no qual sustenta que sendo a verdade um princípio a priori da moral, não há como excepcionar sua observância de acordo com o interesse subjetivo dos indivíduos.

Este trabalho foi escrito em resposta a Benjamin Constant, que escrevera sobre um pretenso direito de mentir por amor à humanidade.

Tratando das relações políticas o filósofo francês pontuou:

“O princípio moral segundo o qual o dizer a verdade é um dever, se for tomado absoluta e isoladamente, tornaria impossível toda a sociedade. A prova disso a temos nas conseqüências diretas tiradas desse primeiro princípio por um filosofo alemão, que vai ao ponto de pretender que mentir a assassinos que me perguntassem se meu amigo se refugiou em minha casa, seria um crime” (Benjamin Constant, Oeuvres politiques, tome III, 6ª partie, apud PASCOAL, 2005).

Para Kant a rigor e independentemente dos motivos não se deve mentir. Não se trata analisar se a verdade trará resultados negativos (infelicidade) ou positivos (felicidade), pois, estes resultados não estão no âmbito de decisão do sujeito, dependem de uma série de circunstâncias que podem, uma vez somadas à mentira tomar rumo totalmente diferente do desejado.

Dessarte, não se deve mentir, porque não se deve mentir, e não porque a mentira acarreta conseqüências felizes ou infelizes.

Eis como Kant justifica que a mentira é sempre imoral:

“O filósofo francês refuta esse princípio da seguinte maneira: é um dever dizer a verdade. O conceito de dever é inseparável do conceito do direito. Um dever é aquilo que corresponde em um ser aos direitos de outro. Onde não há nenhum direito, não há deveres. Por conseguinte, dizer a verdade é um dever, mas somente com relação àqueles que têm direito à verdade. Nenhum homem, porém, tem direito à verdade que prejudica os outros... Deve-se observar em primeiro lugar que a expressão ‘ter direito à verdade’ é desprovida de sentido. Deve-se ao contrário dizer que o homem tem direito à sua própria veracidade (veracitas), isto é, à verdade subjetiva em sua pessoa. Pois objetivamente ter direito a uma verdade significaria o mesmo que dizer que depende da sua vontade, como em geral nas questões sobre o meu e o teu, que uma dada proposição deva ser verdadeira ou falsa, o que produzida então uma estranha lógica... A veracidade nas declarações que não se pode evitar é um dever formal do homem com relação a qualquer outro, por maior que seja o prejuízo decorrente disso para ele ou para outra pessoa; e se não cometo um a injustiça contra aquele que me obriga a uma declaração de maneira injusta, se as falsifico, cometo, por essa falsificação, que também pode ser chamada mentira (embora não no sentido dos juristas), em geral uma injustiça na parte mais essencial do dever: isto é, faço, naquilo que a mim se refere, com que as declarações em geral não encontrem mais crédito, e portanto também todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a força; isto é uma injustiça causada a humanidade em geral.
Define-se, portanto, a mentira como uma declaração intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não há necessidade de acrescentar que deva prejudicar outra pessoa, como exigem os juristas na definição que dela apresentam (mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius). Pois ela prejudica sempre uma outra pessoa, mesmo quando não um outro homem determinado e sim a humanidade em geral, ao inutilizar a fonte do direito.” (Doutrina da Virtude, p. 251)


Conforme se pode perceber, a lição de Kant parece enquadrar-se como uma luva ao caso brasileiro, haja vista que as mentiras, o jogo político pouco interessado no bem comum e as artimanhas adotadas por parte dos nossos mandatários públicos, nos levam a desacreditar nas verdades que outros tantos deles tentam dizer. Somos levados a generalizar o raciocínio amoral de alguns (parecem não ser poucos), estendendo-o a todos quantos exercem certos cargos. Esta é a fonte do profundo déficit de credibilidade que os agentes públicos brasileiros vêm vivenciando nas últimas décadas.

5 Conclusão

A filosofia Kantiana enunciada na doutrina da virtude e nas críticas da razão nos permitiria estender esta reflexão muito além destas poucas páginas.

Nada obstante, não é nossa intenção cansar o leitor, mas tão somente aguçar sua percepção para o fato de que não é somente a impunidade (como querem fazer crer alguns veículos de informação) a causa desse sem número de mazelas que estão sendo experimentadas pela sociedade brasileira.

Mormente no que concerne à corrupção e à violência urbana, acredito que o recrudescimento destes problemas seja fruto de uma profunda crise moral vivida por nossa população.

Não se pode dizer que essas dificuldades sejam conseqüência da má distribuição de renda, da carência de assistência da população de baixa renda, nem tão somente da ausência do Estado em certos espaços.

A falta de parâmetros morais seguros, ou de uma boa educação para a convivência em coletividade, para o domínio da razão sobre os instintos, talvez seja o fator mais relevante para esta crise.

Resta-nos, então, torcermos para que a família, a religião e, por que não dizer os estabelecimentos de ensino, possam somar esforços na busca de uma sociedade mais ciente de seus direitos, mas perfeitamente compreensiva de seus DEVERES.

Chegar próximo do rigorismo Kantiano nos dias atuais talvez seja não mais que um sonho. Mas a melhoria na formação de nossos jovens, principalmente no que tange ao respeito aos direitos dos outros mesmo que isto possa implicar algum desconforto pessoal, é uma realidade que pode ser alcançada desde que haja engajamento de todos quantos têm oportunidade de ter acesso ao conhecimento.

ABSTRACT: This small text traces a parallel enters some important aspects of the kant’s philosophy (contained in Critical of the Practical Reason and in the Doctrine of the Virtue) and the reality of the Brazilian politics and the society. It is intended to demonstrate how much we are distant of the kant’s ideals in the current days and that one of the causes of the great problems tried in Present-day Brazil is a deep moral crisis

KEY-WORDS: law; moral; Kant; politic; society; brazilian.

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6 Referências


KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela P. dos Santos & Alexandre F. Morujão. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 1989.

_____. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_____. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

_____. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993.

_____. Doctrine de La Vertu: Métaphysique dês Moeurs. Deuxième partie. Trad. por A. Philonenko. Paris: Vrin, 1996.

_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1988.

_____. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita.. Trad. Ricardo Terra & Rodrigo Neves. São Paulo: Brasiliense, 1986.

_____. La Metafísica de las Costumbres. Trad. Adela Cortina Orts & Jesús Conill Sancho. Madri: Tecnos, 1999.

_____. Textos seletos-Doutrina da Virtude. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petropolis:Vozes, 2005, p.72-78.

PASCOAL, Georges, Compreender Kant. Trad. Raimundo Vier. 2.ed. Petrópolis:Vozes, 2005.
Wesley Wadim Passos Ferreira de Souza é Professor de Estudos Avançados em Direito Processual Penal da Escola Superior Dom Helder Câmara, Juiz Federal Substituto, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, Mestre em Direito e Instituições políticas pela FCH-FUMEC.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Escoto: Platão ao Alcance da Escola Franciscana.

Ao lado do aristotelismo de Alberto, Tomás e suas escolas, sobrevive ainda a velha tradição agostiniana, com o seu pensamento próprio. Antes como depois, são sempre os franciscanos os seus representantes principais.
a) De Boaventura a Escoto
Até Duns Escoto, que simboliza uma nova culminância, a velha herança é transmitida por Mateus de Aquasparta (+ 1302), cuja epistemologia é particularmente digna de consideração; Guilherme de la Mare (+ 1298), cujo escrito anti-tomista já mencionamos: Ricardo de Mediavilla (+ após 1300); Rogério Marston (+ 1303) no qual claramente já se mostra a tentativa, típica em Oxônia, de fundir aristotelismo e agostinismo; Pedro João Olivi (+ 1298), que introduz três formas na alma humana — a vegetativa, a sensitiva e a intelectiva, das quais só as duas primeiras seriam formas substanciais do corpo, teoria expressamente rejeitada pelo concilio de Viena em 1312. Franciscano foi também Raimundo Lulo (+ 1316) que, com a sua Ars generalis et ultima (1308) quis constituir uma espécie de mecânica de idéias que permitisse calcular artificialmente todas as suas possíveis combinações, tentativa retomada por Leibniz na sua Ars combinatoria.

b) Duns Escoto

O fundador da mais recente escola franciscana é Duns Escoto (1266-1308). Pertence indubitavelmente aos primeiros espíritos da escolástica, embora seja algo excessivo dizer-se que criou uma nova síntese. Mas em toda parte é um espírito adiantado. Suas idéias são mais agudas, suas distinções mais exatas, suas provas mais coerentes, sua problemática mais rica que até então. Quem quiser filosofar com Tomás faria bem, por ocasião de cada questão, retomar os pensamentos de Escoto e explorá-los. Cabeça crítica, bem mereceu o cognome de doctor subtilis. Não critica porém por criticar, mas sempre procura, criticando, elucidar melhor as verdades já estabelecidas. De orientação fundamentalmente agostiniana, conhece ainda Aristóteles muito bem, mas sem aderir a ele. O seu esforço é para ser um mediador entre as oposições do agostinismo e do aristotelismo. Sabe entender-se com independência relativamente à tradição científica, sobretudo com Tomás.

Vida e Obras
Escoto foi Professor em Oxônia, Cambridge e Paris. Em 1308 foi chamado para Colônia onde morreu com 42 anos de idade. O volume de sua obra literária é espantoso dada a curteza da sua vida. Os mais importantes dos seus escritos são: as Quaestiones subtilissimas in metaphysicam Aristotelis (autênticos só os primeiros nove livros); Quaestiones ao De anima- de Aristóteles (provavelmente autêntico); o Tractatus de primo principio (edição crítica de M. Müller, 1941); Opus Oxoniense; Reportata Parisiensia; Quodlibeta. Nova edição crítica das obras de Duns Escoto sob a direção de P. C. Balic, em curso de publicação (1950 ss.)

Bibliografia
E. Longpré, La philosophie de B. J. Duns Scotus (1942). R. Messner, Schauendes und begriffliches Erkennen Duns Scotus (1942). E. Gilson, Jean Duns Scot (1952). Schäfer O., Bibtiographia de Vita Operibus et Doctrina Joh. D. S. Saéc. XIX — XX (1955).
Vamos expor as idéias fundamentais com as quais DUNS ESCOTO enriqueceu e desenvolveu a problemática do seu tempo.

α) Saber e crer
, — A orientação agostiniaua revela-se logo em Duns Escoto se lhe observarmos a posição relativamente
à problemática tradicional, no atinente à ciência e à crença. O conhecimento filosófico de Deus se lhe limita à existência; e as mais importantes elucidações a respeito dele pertencem à fé. O objeto da metafísica não é Deus, como o pensava Averróis, mas o ser como tal, conforme o tinha dito Avicena. A ciência certa é só a que se funda na percepção sensível. O conhecimento das causas supra-sensíveis nos escapa; são-nos acessíveis por argumentos indiretos, sempre débeis e muito gerais. Por isso um conhecimento adequado da essência divina p. ex., escapa à razão natural. Dizemos, certo, que Deus é o ser supremo, primeiro e infinito; mas esses são sempre “conceitos confusos”. Na realidade Deus é ainda onipotente, imenso, onipresente, verdadeiro, justo, misericordioso, onisciente. Mas tudo isto só podemos sabê-lo pela fé e a teologia. Pelo contrário, é possível uma “metafísica cristã”. Esta realiza e examina filosòficamente a fundo as verdades sobre Deus e a imortalidade, depois de nos terem sido reveladas pela fé, conforme já Anselmo o tinha feito. É isso mesmo que Escoto agora pretende fazer no seu Tractatus de primo principio. O quanto Escoto delimita o domínio da razão natural em matéria de metafísica, particularmente o vemos pela sua posição em face da lei moral natural. Enquanto Tomás lhe considera todo o conteúdo como racionalmente compreensível e demonstrável, Escoto afirma que isso é possível só quanto às disposições dos três primeiros mandamentos do Decálogo, mas não quanto aos outros. Assim, p. ex., podíamos conceber uma ordem do mundo onde fosse lícito o homicídio, a poligamia e não existisse nenhuma propriedade privada. Tomás considerava todos os mandamentos do Decálogo, por causa da sua necessidade, racional, como imutáveis; Escoto considerava tais só os três primeiros, porque a sua alteração implicaria numa contradição interna, o que não se dá com os outros. Por isso estes últimos preceitos morais são disposições dependentes da vontade divina e não têm, como para Tomás, nenhum conteúdo racional. Escoto não é tão crente na razão; espírito crítico, torna mais estreitas as fronteiras da razão. Talvez também quisesse assim encerrar em apertados limites as pretensões filosóficas totalizantes dos averroístas.
β) Primado da vontade. — Compreendemos agora como Escoto chegou à doutrina do primado da vontade. Mas com isso não quis ceder a um irracionalismo, nem afirmar que a vontade pura, por si mesma e só, já possa ser prática. Também Escoto vê na vontade em si uma “faculdade cega”, como sempre diz Tomás; e sabe que só pode ser querido o fim previamente proposto pelo intelecto. Mas Escoto atribui à vontade humana maior valor que ao conhecimento, porque o amor nos une mais intimamente com Deus do que a fé, e isso se vê logo do fato de ser o ódio a Deus pior que a ignorância dele. Demais, a vontade deve ser livre em todas as circunstâncias. Segundo Esgoto, nada pode determiná-la, mesmo o supremo bem. Só ela ê a causa das suas ações. A singular valorização da vontade, característica do escotismo, também se transfere para Deus. Assim, é a vontade divina a que positivamente cria a multidão das idéias particulares, de acordo com as (piais Deus formou o mundo, Se Deus conhece as cousas nas suas essências próprias, é que ele encerra em si de toda a eternidade os modelos delas. Mas elas não são produzidas arbitrariamente, como não o são as leis morais positivas, pois a vontade divina cria o que a sabedoria divina preconcebeu. E também aqui, de novo, a possibilidade ou não de uma idéia é a essência de Deus quem a decide e isto sob a égide do princípio de contradição. Também Escoto introduz no seu sistema o platonismo cristão. O seu pensamento faz eco ao αποβλετειν προς τι (as Idéias com que Platão estereotipicamente explica a criação do mundo pelo demiurgo) tão claramente como em Agostinho, Tomás ou Boaventura.

γ) Individuação
. — Conexa com esta valorização da vontade e a sua, em cada caso, decisão positiva, é a posição de Escoto relativamente ao problema da individuação. Também o individual é uma entidade positiva e tem como tal uma haecceitas. O conhecimento do individual é o perfeitíssimo dos conhecimentos. Assim, em face do primado do universal em Platão, Aristóteles e Tomás, se afirma uma nova concepção que fará escola e ainda mais se fortalecerá com o aproximar-se dos tempos modernos. Embora o termo haecceitas somente formule o problema, sem o resolver, já nele se manifesta tipicamente e pela primeira vez o que virá a ser uma afirmação capital na filosofia moderna — o individualismo.

δ) O conhecimento
. — Escoto é conseqüente consigo mesmo, na sua teoria do conhecimento, quando admite como cognoscível na sua totalidade as cousas concretas individuais. Não há nenhum resíduo irracional, nem nenhuma necessidade de nos aproximarmos do individual, passando pelo desvio do universal. Numa intuição intelectual-sensível captamos imediatamente a cousa existente. Mas o conhecimento não se limita só a isso; também Escoto sobe aos conceitos universais. Estes são abstraídos e, de novo, é o intelecto agente o que faz essa operação. Mas ensina ele, que a natura communis é um meio termo entre o individual e o universal. É só por esta que apreendemos a species intelligilis, a idéia universal, de que deve servir-se todo conhecimento científico. A atividade do intellectus agens no processo cognitivo Escoto particularmente o realça. Em face dele a intuição é causa simplesmente parcial; mas ele é ex se causa integra factiva obiecti in intellectu possibili, A sua função consiste em estabelecer uma certa e constante relação entre os nossos modos de conhecer e o objeto do conhecimento. E assim Escoto assinala a lei própria do conhecimento humano, melhor que Tomás, que também aceita o princípio — tudo o, conhecido o é ao modo do conheceu te. O aspecto subjetivo “do conhecimento vai ainda mais longe. Para Escoto a verdade já não é, conforme à. ingênua teoria da imagem, simplesmente uma adequação; mas “é verdade o que é comensurado com a sua proporção”. Isto manifesta clara a sua visão crítica. Escoto também sabe que a experiência sensível enuncia somente juízos de fato. Mas os princípios só podem ser conhecidos pelo intelecto e sua capacidade apreensiva de relações, mesmo quando interpretamos erroneamente os dados da experiência sensível, pois os sentidos não exercem nenhuma causalidade eficiente sobre o intelecto (intellectus non habet sensus pro causa, sed tantum pro occasione). Quando Escoto assim o diz e quando, com o auxílio dos princípios do intelecto, decide em última instância sobre a verdade e o erro dos nossos juízos, aqui reaparece — como, demais disso, na doutrina da natureza comum, que não passa de um universal disfarçado — o velho conceito do ειδοζ. E assim em Escoto a relação entre a sensibilidade e o intelecto fica tão obscura como na escolástica coeva. Só a filosofia inglesa contemporânea é que tomou a sério a questão da sensibilidade. Mas já vemos por Escoto, e ainda mais por Ockham, o aproximar-se lento e vagaroso a essa evolução, mas enfim o aproximar-se. E estas observações nos fazem conhecer como o pensamento moderno é uma continuação do medieval e não surgiu repentinamente, como Minerva da cabeça de Zeus, novidade totalmente nova e diversa.

ε) Conceito unívoco do ser
. — Escoto fez falar muito de si pela sua doutrina da universalidade do conceito de ser, a propósito das predicações que fazemos a Deus. Não quer com isso estabelecer nenhumas categorias de sentido unívoco atribuível a Deus e ao mundo ao mesmo tempo. Neste ponto segue a velha teoria da predicação analógica. Mas àquele ser generalíssimo manifesto em tudo quanto existe, seja o que for que conheçamos e a que façamos predicações, embora as cousas se distingam umas das outras, deve corresponder um nome e um conceito próprios, dado que há um sentido quando se fala do ser. Em toda analogia deve sempre haver algo de comum e de igual. É este um pensamento que os antigos não exprimiram assim. Esse ser generalíssimo é o maxime scibile e, como tal, para Escoto objeto da metafísica. É um transcendental, mais determinado pelos atributos de infinito–finito, necessário-possível e semelhantes modalidades. Nestas modalidades entram as distinções que, antes de Escoto, se faziam mediante os conceitos de ser superessencial, por participação, necessário e contingente. Assim se salva a existência da problemática e ao mesmo tempo da noção de analogia. Pois, uma comparação só é possível com um ser comum e já conhecido, seja esse uma idéia ou um ser modalmente conjugarei de espécie mais universal, o que também significa o mesmo.

ξ) Provas de Deus
. — Toda a agudeza do seu espírito Escoto a aplicou ao problema das provas de Deus. Desde cedo rejeita a prova aristotélica do movimento, por ter o princípio do movimento muitas exceções. Mas aceita a prova tirada da causa eficiente, a da finalidade e a dos graus de perfeição. A explicação filosófica do conceito de causa, em geral e do princípio de causalidade em particular, e da impossibilidade de um regressus in infinitum, que Escoto aqui empreende, devia incluir-se em qualquer exposição sistemática das provas de Deus. (Para mais minúcias cf. a penetrante análise em Gilson-Bóhner). Neste conjunto também Escoto retoma a prova anselmiana, ampliando-a pela prova da possibilidade da idéia de um ser infinito e é assim precursor do pensamento de Leibniz.

c) Escola escotista
Escoto exerceu uma influência nos séculos seguintes. Contam-se entre os seus discípulos Antônio Andreae (+ 1320), o autor da Expositio in Metaphysicam por muito tempo atribuída a Escoto; Francisco de Mayronis (+ 1325); Gualtério Burleu (+ após 1343); Tomás Bradwardine (+ 1349), típico para a tradição matemática oxoniense; Pedro Tartareto, em 1490 Reitor da Universidade Parisiense; Francisco Liqueto (+ 1520); Maurício a Portu (+ 1520) etc.
Fonte:
HIRSCHBERGER, Johannes. A escola franciscana mais recente: doutrinas antigas e novas. In: _____. História da Filosofia da idade média. Disponível em <http://www.consciencia.org/filosofia_medieval21_escola_franciscana.shtml> acesso em 13 set. 2008.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A atualidade do pensamento de Duns Scotus.

Por Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM

 
Duns Scotus (1265/6 – 1308) foi, com razão, considerado um dos expoentes máximos da “escola franciscana”. Suas intuições e sistematizações teológicas têm, neste sentido, marcado o desenrolar de uma específica maneira de refletir teologicamente, que nos foi legada pela tradição com o nome de “teologia franciscana”. Indagar, portanto, acerca das posições teológicas de Scotus, segundo nos parece, pode se tornar uma grande oportunidade. Pode se converter, de fato, na ocasião propícia para se resgatar nossa mais genuína identidade franciscana e, consequentemente, recuperar sua peculiar relevância para o “nosso tempo”.
Ao tratarmos, portanto, do pensamento de Scotus não podemos deixar de nos perguntar pela sua ‘relevância’, vale dizer, pela importância de suas reflexões teológicas para o “nosso tempo”. A consciência que estamos atravessando uma crise epocal tem-se tornado um lugar-comum. Em âmbito teológico, verifica-se o reflexo desta crise na forma específica de uma profunda crise dos assim chamados “paradigmas teológicos”. Adverte-se hoje a necessidade de se recorrer a paradigmas mais amplos e, ao mesmo tempo, mais flexíveis que permitam à teologia pensar os seus vários temas na sua permanente inter-relação, desentranhando assim a intrínseca abertura de cada evento ou experiência àquela dimensão mais global e complexa da inteira realidade. Para tanto, torna-se imprescindível ampliar, ou, em certos casos, até substituir, os paradigmas utilizados pela teologia moderna e contemporânea.
Urge, portanto, repensar a fé na sua mais intrínseca relação com a totalidade e a complexidade da vida e do cosmos. Por esta razão, a pergunta de fundo que guiará nossa incursão pela teologia de Scotus é precisamente esta: de que maneira suas intuições e suas reflexões podem nos auxiliar na tentativa de elaborar reflexões mais pertinentes, mediante o recurso a paradigmas mais afins aos desafios e às demandas postos à reflexão teológica atual?
Salientamos, de início, que a singularidade de Scotus não consiste propriamente no exercício de um pensamento alheio à complexidade do labor teológico de seu tempo. E o tempo de Scotus, como sabemos, é marcado por graves lacerações e, por isso mesmo, caracterizado por inusitadas possibilidades. Diríamos que a genialidade do ilustre teólogo franciscano consiste justamente na capacidade por ele manifestada de intuir os reais desafios de então e de saber problematizá-los no bojo mesmo da tarefa teológica. Imerso em um específico contexto no interior do qual a teologia se sentia radicalmente confrontada pelo saber das incipientes universidades, Scotus assume com particular gravidade o ônus de repensar as bases e o processo mesmo de constituição da teologia enquanto ciência. Não sucumbe face aos novos desafios por mais que parecessem ameaçadores. Assume a incumbência de pensar radicalmente a fé cristã, pois convencido está de que fé e razão não constituem espaços separados, nem são como que dimensões alheias e, portanto, indiferentes uma à outra. Expressão da acolhida de um dom gratuitamente oferecido, a fé constitui o húmus no interior do qual a razão pode oferecer o melhor de si, explorando ao máximo suas próprias e intrínsecas virtualidades, em vista de uma compreensão cada vez mais profunda dos mistérios de Deus, do ser humano e da inteira realidade criada.
No exercício desta peculiar incumbência, Scotus se destaca pela fina acribia em bem discernir, o que lhe possibilitou dissipar inúmeras confusões e esmerar-se na especulação acerca dos mistérios da fé. O Doutor sutil se caracteriza, ainda, por um raciocínio deveras singular capaz de, num cerrado diálogo com seus interlocutores, desconstruir seus argumentos e forjar conceitos e linguagem novos cada vez mais precisos e inclusivos. Com Scotus, talvez a teologia cristã tenha atingido os mais altos píncaros da especulação. Scotus é filho daquele período plasticamente descrito por Huizinga como “outono da Idade Média”. Todavia, seria injustiça nossa considerá-lo apenas o derradeiro fruto daquele longo e rico período histórico. Scotus constitui, na verdade, o fruto maduro daquela fecunda estação, porque sorveu no melhor dos modos a mais genuína seiva que corria pelos veios mais profundos dos sulcos de então.
É visível, em nossos dias, o crescente interesse pelo pensamento de Scotus. Nosso tempo parece marcado pela experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela deslegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto em face dos grandes projetos construídos sobre a razão, que parecia constituir um sólido alicerce. Chega-se a falar em pós-Modernidade como termo apto a exprimir o total desencanto frente a todas as grandes pretensões totalizantes e excessivamente pretensiosas da Modernidade. Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a “epistemologia forte”: racionalista e naturalista. Por esta razão, poder-se-ia dizer que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV. Estaríamos, porventura, presenciando hoje uma configuração cultural mudada no seio da qual estariam sendo recriadas condições propícias à aceitação da proposta do Doutor sutil? Estaríamos, finalmente, mais predispostos a acolher o modelo defendido pelo ilustre pensador escocês de uma sadia pluralidade dos diversos saberes mediante um processo de profundo respeito pela autonomia de cada um deles?

Extraído de http://www.itf.org.br

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Platão - Mito do Anel de Giges.

359a - e
Dizem que uma injustiça é, por natureza, um bem e sofrê-la, um mal,mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem - não pagar a pena das injustiças - e o maior mal - ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre estes dois extremos, deve, não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e fosse verdadeiramente um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem sofrer injustiças, pois seria loucura. Aqui tens, Sócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua origem, segundo é voz corrente.
Sentiremos melhor como os que observam a justiça o fazem contra a vontade, por impossibilidade de cometerem injustiças, se imaginarmos o caso seguinte. Demos o poder de fazer o que quiser a ambos, ao homem justo e ao injusto; depois, vamos atrás deles, para vermos onde é que a paixão leva cada um. Pois bem! Apanhá-lo-emos, ao justo, a caminhar para a mesma meta que o injusto, devido à ambição, coisa que toda criatura está por natureza disposta a procurar alcançar como um bem; mas, por convenção, é forçada a respeitar a igualdade. E o poder a que me refiro seria mais ou menos como o seguinte: terem a faculdade que se diz ter sido concedida ao antepassado de Lídio - Giges. Era ele um pastor que servia em casa do que era então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direção à parte interna da mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. uma vez lá chegando, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o, e assim se tomou o poder.
360a - e
Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o homem justo pudesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e faze tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se dessa maneira, os seus atos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo caminho. E disto se poderá afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, por entender que a justiça não é um bem em si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efetivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça do que a justiça. E têm razão, como dirá o defensor desta argumentação. Uma vez que, se alguém que usurpasse tal poder não quisesse jamais cometer injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, pareceria aos que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Contudo, haviam de elogiá-lo em presença uns dos outros, enganando-se reciprocamente, com receio de serem vítimas de alguma injustiça. Assim são, pois, estes fatos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Zizek: o casamento entre democracia e capitalismo acabou.


O filósofo e escritor esloveno Slavoj Zizek visitou a acampamento do movimento Ocupar Wall Street, no parque Zuccotti, em Nova York e falou aos manifestantes. “Estamos testemunhando como o sistema está se autodestruindo. "Quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou". Leia a íntegra do pronunciamento de Zizek.
 Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma.
Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.
Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.
Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”
Em abril de 2011, o governo chinês proibiu, na TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que falassem em realidade alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho. Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem oprimido até a nossa capacidade de sonhar.
Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a fazer aqui?
Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi mandado para trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos censores, por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha.”
É assim que vivemos – temos todas as liberdades que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é isso que estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.
Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus, como éramos jovens e foi lindo”.
Lembrem-se que a nossa mensagem principal é: temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes queremos?
Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas também com os falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo, do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete sem gordura.
Vão tentar transformar isso num protesto moral sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político seja alvo de outsourcing. Queremos ele de volta.
Não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.
A mudança é possível. O que é que consideramos possível hoje? Basta seguir os meios de comunicação. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua, tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade. Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados de saúde.
Talvez devêssemos definir as nossas prioridades nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética. Por isto e só por isto devemos lutar.
O comunismo falhou totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é que são realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram ídolos blasfemos.
Por isso, do que precisamos é de paciência. A única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar nostalgicamente como foi bom o tempo que passámos aqui. Prometam que não vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam. Muito obrigado
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Liberdade e Vontade em Boécio.

Por Sávio Laet de Barros Campos. Bacharel-Licenciado em Filosofia Pela
Universidade Federal de Mato Grosso
1.1) Deus, Causa e Fim de Todas as Coisas
No seu cárcere a espera da morte, Boécio parece se desesperar e lamenta a sua sorte. Só encontra consolo no seu estoicismo cristianizado, que lhe apregoa a existência de um Deus, ser perfeito e governador do mundo.1 De fato, parece impossível que um universo tão bem ordenado, seja conduzido somente pelo acaso: “(…) Seria impossível crer que um universo tão bem ordenado fosse movido pelo cego acaso: sei que Deus preside aos destinados à Sua obra, e nunca me desapegarei dessa verdade”.2 Destarte, Deus não é apenas o princípio de todas as coisas, mas também o fim para o qual todas elas se encaminham. De fato, para quem conhece o princípio, não saber qual seja o fim é estultice:
‘Então sabes donde provêm todas as coisas? ‘Sim’, respondi, e eu lhe disse que provinham de Deus. ‘ E como podes conhecer o princípio de tudo e ignorar o fim?’.3
1.2) Submeter-se à Vontade de Deus
Agora bem, se o fim de todas as coisas é Deus, então não há o que temer.4 Com efeito, se Ele é o governador do mundo, as situações nas quais nos encontramos, inclusive os infortúnios, lhe estão sujeitas. Por conseguinte, cabe, pois, àquele que reconhece ser a nossa vida governada, não pela Fortuna, mas por Deus, aceitar os reveses com docilidade.5 Sem embargo, é a ignorância destas verdades, que nos causa temor diante do sofrimento e da morte. Desta feita, quando nos esquecemos de que o verdadeiro soberano é Deus, e que é por suas leis que o universo é regido, então pensamos inocuamente que são os ímpios os que são felizes:
“É porque desconheces qual é a finalidade do universo que tu imaginas felizes e poderosos os que te acusam. É porque esqueceste as leis que regem o universo que julgas que a Fortuna segue seu curso arbitrário e que ela é deixada livre e soberana. Tais são as causas temíveis, não digo apenas da doença, mas até da morte.“6
1.3) A Cegueira das Paixões e a Nossa Liberdade
Ora bem, e o que nos cega para enxergar estas verdades, são as nossas paixões. Desta sorte, é preciso, pois, dominá-las. Enquanto o Orbe segue o seu curso natural e atinge o seu fim, ao homem – para que o atinja – cumpre ainda não ser complacente consigo mesmo, resistindo assim aos seus desejos ignominiosos. De fato, enquanto os demais seres alcançam o seu fim naturalmente; ao homem, entretanto, foi concedido alcançar o seu fim livremente, pois vontade é sinônimo de liberdade. O que todos os seres naturais fazem naturalmente, ao homem é dado fazer voluntariamente7:
“Quem quer ser poderoso Que Domine suas ávidas paixões
E não se abandone ao prazer,
Companheiro tão vergonhoso.
Mesmo se nos confins da Terra
O Indo obedece às tuas leis
E Tule mesmo treme à tua voz,
Afasta teus negros desejos,
Cessa de ter complacência contigo
Senão, não serás poderoso.”8
1.4) Liberdade e Providência
Com efeito, se conseguimos ter o domínio sobre nossas paixões, refreando-as, somos livres. Mas como ser livre, se a Providência tudo dispõe de antemão, e se o próprio acaso está a ela sujeito? :
“Podemos portanto definir o acaso como um acontecimento inesperado, resultado de uma somatória de circunstâncias, que parece no meio de ações realizadas com uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal conjunto de circunstâncias é justamente a ordem que procede de um encadeamento inevitável e tem como fonte a Providência, que dispõe todas as coisas em seus lugares e tempos.“9
Todos ser racional é, ipso facto, livre. E ser livre é poder julgar e saber discriminar o que é bom do que é mal. Portanto, possuir o livre-arbítrio é poder escolher o que é desejável e evitar o que se julga, deva ser evitado. Ora bem, todos os seres racionais, podem julgar o que é bom e o que é mal, bem como fazer as suas escolhas, de acordo com os seus julgamentos:
“(…) o livre-arbítrio existe, e nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e a faculdade de julgar. Com efeito, todo ser naturalmente capaz de usar a razão possui a faculdade do juízo, que lhe permite distinguir as coisas. Portanto, é ele que julga o que deve ser evitado e o que deve ser procurado. E, assim procura-se tudo aquilo que se julga ser desejável, enquanto se faz tudo para evitar o que se julga deva ser evitado. E é dessa forma que os seres providos de razão são igualmente providos de faculdade de dizer sim ou não.“10
Contudo, nem todos os seres providos de razão, possuem a liberdade na mesma proporção. De fato, as substâncias separadas, possuem um juízo excelente e são capazes de realizar os seus desejos. Já as almas dos homens, serão tanto mais livres, quanto mais se mantiverem ligadas à contemplação da inteligência divina, e serão tanto menos livres, quanto mais se voltarem para as coisas corporais, e serão ainda mais reduzidas à servidão, se se ligarem à carne. Destarte, o grau extremo de escravidão do homem, é quando, dominado por seus vícios, deixa de usar a sua razão:
“Mas atenta para o fato de que nem todos os seres a possuem na mesma proporção. De fato, as substâncias celestes e divinas possuem um juízo profundo, uma vontade sem mácula e a capacidade de realizar seus desejos. Quanto às almas humanas, são necessariamente mais livres quando se mantêm na contemplação da inteligência divina, e menos livres quando descem para juntar-se às coisas corporais, e menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o fundo da servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter a posse de sua própria razão.“11
Ao contrário, o supremo grau da liberdade e da felicidade humana, consistirá sempre em ser o homem senhor de si mesmo, livrando-se das coisas terrenas, deixando-se guiar pela sua razão, mas só poderá fazê-lo, se estiver unido a Deus:
“Vou te mostrar no que consiste a suprema felicidade. A teu ver há algum bem mais precioso do que tua própria vida? “Não”, responderás. Então, se consegues ser senhor de ti mesmo, possuirás algo que jamais poderás perder nem a Fortuna te arrebatar.“12
Com efeito, ser feliz é ser livre, mas o homem só será livre verdadeiramente, quando puder viver de acordo com a sua razão. Agora bem, ele só poderá viver de acordo com a sua razão, se estiver unido a Deus. Mas ele só estará unido a Deus, quando conformar à sua vontade a vontade de Deus. Portanto, em última análise, fazer a vontade de Deus, é a suprema felicidade: “(…) é preciso admitir que Deus é a suprema felicidade”13. Destarte, é no querer o que Deus quer, que residirá, justamente, o grau supremo de nossa liberdade.14 Donde, Providência – que é precisamente o desígnio divino – e liberdade, longe de se excluírem, caminham juntas: “Longe de se excluírem, a Providência de Deus e a liberdade do homem se completam harmoniosamente.”15
1.5) Liberdade e Presciência
Ora bem, permanece, entretanto, uma certa aporia. Com efeito, como conciliar o fato de Deus conhecer todas as coisas de antemão, e as ações humanas serem livres? Sem embargo, se Deus é infalível na sua presciência, se conhece as nossas ações e vontades, não poderá haver ato livre, pois as nossas ações, intenções e vontades, seriam então determinadas por Deus. De fato, se nossas ações são livres, como Deus poderia conhecê-las previamente? Se a liberdade é determinar-se a si mesmo, e se quem determina nossas ações é a Providência Divina – que tudo governa – como seremos nós livres? Além disso, se ser livre é ser capaz de escolher, mas se não podemos escolher senão o que a Providência de Deus determinou, como se daria esta nossa liberdade? Por outro lado, se admitirmos que a Providência Divina possa falhar em seus desígnios, não haverá mais em Deus, firme presciência do futuro, mas opinião falha, o que seria sacrílego acreditar:
“Pois, se Deus prevê tudo e não se pode enganar de forma alguma, tudo se produz conforme a Providência previu. Deste modo, se ela conhece tudo previamente desde toda eternidade, e não apenas as ações dos homens mas também suas intenções e vontades, não seria possível haver qualquer livre-arbítrio. Com efeito, não se produzirá nenhuma ação ou vontade, seja qual for, que não tenha sido prevista anteriormente pela Providência divina, que é capaz de se enganar. De fato, se esses acontecimentos podem tomar outro rumo que aquele que ele previu, não falaríamos mais numa firme presciência do futuro, mas na realidade de uma opinião incerta, o que seria, no meu ponto de vista, um sacrilégio.“16
Com efeito, alguns filósofos diziam que as coisas não acontecem porque a Providência as prevê, mas a Providência as prevê porque elas irão, necessariamente, acontecer. Desta sorte, seria, pois, invertida a ordem, e a Providência Divina ficaria à mercê dos acontecimentos e não o contrário:
“E é fato que eu não partilho a opinião e os raciocínios de alguns filósofos pelos quais eles acreditam poder desatar o nó do problema. Segundo eles, se algo acontece não é porque a Providência tenha previsto que devia acontecer; pelo contrário, é porque algo deve acontecer que a Providência divina é instruída de tal fato; portanto a proposição fica invertida, pois desse modo não é necessário que os acontecimentos ocorram porque foram previstos, mas é necessário que eles sejam previstos porque vão acontecer.“17
Daí, que a solução para este problema, consiste no fato de que, embora Deus conheça antecipadamente os acontecimentos futuros, estes não são determinados pela sua presciência.18
Para aclarar esta opinião, suponhamos que não haja presciência. Ora, em tal caso, a vontade poderá determinar-se a si mesma, sem incorrer em necessidade.19 Digamos agora que haja presciência, mas aduzindo de que ela não imponha nenhuma necessidade à coisa. Ora, a vontade então permanecerá livre da mesma forma.20
No entanto, em que consistirá, neste caso, finalmente, a presciência? Ela será, pois, um sinal de que acontecimentos futuros acontecerão. Ora, um sinal indica apenas que algo acontecerá, sem, contudo, fazê-lo acontecer:
“Mas tu me dirás que, mesmo que a presciência não cause necessariamente os acontecimentos futuros, ela não deixa de ser sinal de que estes acontecimentos ocorrerão necessariamente. Por conseguinte, mesmo que não tenha havido presciência, a realização dos acontecimentos futuros será claramente estabelecida como necessária: pois um sinal, seja qual for, indica apenas o que é, mas não pode criar o que ele indica.”21
Destarte, o conhecimento do presente, não torna necessárias as coisas que nele acontecem.22 Ora, Deus vive como que num eterno presente.23 Logo, para Ele é possível conhecer o futuro, sem, entretanto, subtrair-lhe a liberdade. Deus, portanto, prevê infalivelmente, atos livres enquanto livres.24
Deus é eterno, e a eternidade é a posse total, perfeita e simultânea de uma vida sem fim”.25 Logo, enquanto para nós existe um antes e um depois, para Deus tudo está perfeito e simultaneamente presente.26 De modo que, como dissemos acima, podem-se conhecer as coisas presentes, sem excluir-lhes a liberdade. De maneira que, Deus pode conhecer as coisas futuras – as ações livres e necessárias – que para Ele são presentes, sem determiná-las:
“Portanto, há um antes e um depois nos acontecimentos, mas não no conhecimento totalmente presente que Deus tem deles. (…); portanto, ele vê eternamente o necessário como necessário e o livre como livre.“27
Boécio abarca, magistralmente, numa única cadeia de raciocínios, todas estas realidades que tentamos de descrever, na seguinte passagem do De Consolatione:
“Conseqüentemente se a Providência vê algo como estando presente, esse algo necessariamente deve estar, embora ela não possa imprimir nenhuma necessidade que esteja ligada a uma natureza distinta. Ora, Deus vê como presentes os acontecimentos futuros que resultam do livre-arbítrio. Por conseguinte, esses acontecimentos, do ponto de vista do olhar divino, tornam-se necessários e submetidos a uma condição que é o conhecimento divino; mas, considerados em si mesmos, não perdem a absoluta liberdade de sua natureza. Daí resulta que todos os acontecimentos que Deus conhece de antemão e que vão se produzir produzir-se-ão com certeza; mas alguns deles provêm do livre-arbítrio e, embora se produzam, não perdem ao se realizarem sua natureza própria, segundo a qual, antes que ocorram, poderiam não acontecer.“28
1.6) Providência e Destino
Todo ser criado, sujeito à mudança e à evolução, todas as coisas deste mundo enfim, que de alguma forma se movimentam, encontram em Deus a sua causa, ordem e estabilidade. Agora bem, enquanto esta regra, segundo a qual Deus governa todas as e à qual todas as coisas estão sujeitas, subsiste na inteligência divina, damos a ela o nome de providência. Quando se considera, entretanto, o cumprimento destes decretos eternos de Deus no tempo, dá-se o nome de destino:
“Tudo o que vem ao mundo, todos os seres sujeitos à mudança e à evolução, tudo o que se move de uma certa maneira, encontram sua causa, sua ordem e sua forma na inteligência divina. Esta, firme na cidadela de sua indivisibilidade, fixa uma regra multiforme ao governo do universo. Quando se considera esta regra do ponto de vista da pureza da inteligência divina, chamamo-la Providência; mas quando se a considera com relação àquilo que ela põe em movimento e ordena, é o que os antigos chamavam Destino.“29
Estas duas realidades estão, pois, interligadas, pois o destino só se realiza enquanto procede da Providência. Assim como a casa preexiste na mente do artista e só depois, e por partes, ele a executa, assim também, a Providência divina fixa o que deve ser feito uma vez por todas, enquanto o Destino cumpre, em meio à temporalidade e multiplicidade, aquilo que já estava prefixado pela Providência. Porquanto, o destino é a execução, no tempo, daquilo que a inteligência divina fixou para ser realizado:
“Embora se trate de duas coisas diferentes, elas dependem uma da outra: o desenvolvimento do Destino procede da indivisibilidade da Providência. Com efeito, do mesmo modo que um artista começa por representar mentalmente a forma de sua criação antes de passar para a realização, e além disso cumpre por etapas sucessivas aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também Deus fixa pela Providência o que deve ser feito, uma só vez e definitivamente, enquanto o Destino organiza na multiplicidade e na temporalidade exatamente aquilo que foi fixado.”30
Cumpre destacar ainda, que tudo o que está subordinado ao Destino, está, concomitantemente, sob o governo da Providência, até porque, o próprio destino está sob o comando da Providência. No entanto, importa dizer, que nem todas as coisas que estão submetidas à Providência, estão submetidas ao Destino:
“Segue-se que tudo o que é subordinado ao Destino o é também à Providência, à qual está submetido o próprio Destino, mas que certas coisas que estão sob o controle da Providência não estão subordinadas ao encadeamento do Destino.“31
De fato, podemos escapar do Destino, à medida que nos unimos à inteligência divina, e contrariamente, podemos nos tornar joguetes dele, à medida que nos afastamos de Deus. Destarte, a mobilidade e os incursos do Destino podem ser, pois, totalmente afastados, por aquele que adere perfeitamente à inteligência suprema, a qual é imóvel e torna imóvel quem dela se aproxima:
(…) segundo o mesmo raciocínio, quanto mais alguma coisa se distancia da inteligência suprema, mais e mais os liames do Destino a envolvem, enquanto alguma é tanto menos dependente do destino quanto mais se aproxima do pivô do universo. E, se ela adere firmemente à inteligência suprema, desprovida de todo movimento, torna-se também imóvel e escapa à dominação do Destino.”32
Notas:
1 Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 217: “E´ no contexto de suas extensas pesquisas morais que vamos encontrar as idéias de Boécio sobre a vontade. O seu conhecimento é indispensável para a compreensão do problema ventilado no De consolatione philosophie. Encarcerado e ameaçado de morte, Boécio não encontra consolo senão no estoicismo atenuado da moral cristã. Existe um Deus que, além de perfeito, é também Providência.”
2 Boécio. A Consolação da Filosofia. I, 12.
3 Idem. Op. Cit.
4 Idem. Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 217: “O Sumo Bem não é apenas o princípio de todas as coisas, mas também seu fim último.”
5 Idem. Ibidem: “Existe um Deus que, além de perfeito, é também Providência. Sendo assim, cumpre-nos esposar amorosamente as decisões de sua vontade.”
6 Boécio. Op. Cit. I, 12.
7 Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 217: “O que todos os demais seres fazem naturalmente, o homem deve fazê-lo voluntariamente. Vontade é sinônimo de liberdade.”
8 Boécio. Op. Cit. III, 10.
9 Idem. Op. Cit. V, 1.
10 Idem. Op. Cit. V, 3.
11 Idem. Op. Cit.
12 Idem Op. Cit. II, 7.
13 Idem. Op. Cit. III, 19.
14 Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 217: “O supremo grau de liberdade e, portanto, de felicidade, está em se querer o que Deus quer e em se amar o que Ele ama (…)”.
15 Idem. Ibidem.
16 Boécio. Op. Cit. V, 5.
17 Idem. Op. Cit.
18 Idem. Op. Cit: V, 7: “Conseqüentemente, se o fato de se conhecerem tais coisas antes não confere nenhuma necessidade às coisas futuras, caso que reconheceste há pouco, qual seria a razão pela qual a realização das coisas que dependem da vontade fosse dirigida forçosamente a um termo fixado anteriormente?”.
19 Idem. Op. Cit: “‘Pela necessidade do raciocínio e a fim de que vejas a conseqüência que daí resulta, suponhamos que não haja a presciência. Supondo-se isso, os acontecimentos determinados por uma vontade livre estariam sujeitos à necessidade? ’ ‘De forma alguma. ’”
20 Idem. Op. Cit: “Suponhamos agora que haja presciência, mas que ela não imponha nenhuma necessidade às coisas; segundo julgo, a vontade manterá sua inteira e absoluta liberdade.”
21 Idem. Op. Cit; Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 218: “A presciência divina é indício de um ato livre, e não sua causa; quer seja previsto, quer não, o ato se realiza da mesma maneira: o fato de ser previsto não tem o efeito de determiná-lo.”
22 Boécio. Op. Cit V, 7: “Eis, portanto, o gênero de acontecimentos que, embora já antes conhecidos, se realizam livremente, pois, assim como o conhecimento do presente não torna necessários os fatos que se realizam, da mesma forma a presciência do que vai acontecer não impõe nenhuma necessidade aos acontecimentos futuros.” (O itálico é nosso).
23 Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 170: “Deus vive, pois, num perpétuo presente.”
24 Idem. Ibidem: “Deus prevê infalivelmente os atos livres, mas os prevê enquanto livres (…)”.
25 Idem. Ibidem.
26 Philotheus Boehner. Ibidem. p. 218: “Devemos representar-nos Deus como existindo num eterno presente e de maneira totalmente extratemporal.”
27 Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 170
28 Boécio. Op. Cit V, 11.
29 Idem. Op. Cit. IV, 11.
30 Idem. Op. Cit.
31 Idem. Op. Cit.
32 Idem. Op. Cit.
BIBLIOGRAFIA
BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. Trad: Willian Li. São Paulo: MARTINS FONTES, 1998.
GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: MARTINS FONTES, 1995. p 159 a 175.
PHILOTHEUS BOEHNER, Etienne Gilson. História da Filosofia Cristã, Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7ºed. Trad. Raimundo Vier. Rio de Janeiro: VOZES, 2000. p. 209 a 222.