sábado, 10 de novembro de 2012

Filosofia Como Salvação da Alma

Por Michael Erler
fonte: :http://portalveritas.blogspot.com.br/2009/07/filosofia-como-salvacao-da-alma.html

A crise do terceiro século depois de Cristo constituída de devastação, decadência econômica e queda do padrão de formação tem importância incisiva também para a história da filosofia. O estoicismo, que oferecia ao indivíduo um auxílio orientador para seus interesses pessoais no imanente, perdeu em importância. A filosofia helenista foi substituída definitivamente pelo ensino de Platão, ou melhor, pelo assim chamado neoplatonismo, cujo autor pode ser encontrado em Plotino (205-270 d.C.) e cujas estruturas fundamentais têm influência marcante também sobre filósofos gregos posteriores como Proclo e igualmente sobre autores romanos como Agostinho e Boécio. O conceito "neoplatônicos", Plotino e Proclo, os dois cabeças do neoplatonismo da Antiguidade tardia, não querem proporcionar um ensino que vá além de Platão. Eles veem sua tarefa, antes, em tornar explícita aquela verdade que às vezes é apenas insinuada pela obra de Platão. Como os filósofos de todas as mais importantes escolas filosóficas, também Plotino e os platônicos posteriores nada mais queriam ser que exegetas de seu mestre Platão (Enn. 5,1 [10] 8,10-13). Por isso, uma parte principal do ensino da filosofia consistia na leitura e no comentário dos diálogos de Platão, que eram considerados canônicos e como fontes da verdade.

Novos aspectos perfeitamente existentes não são contabilizados como produção própria, mas mediante projeção para Platão rreclamados e legitimados em prol deste. Plotino e também Proclo alinham-se na tradição da exegese filosófica, a qual já havia sido praticada anteriormente, em cada caso com métodos diferentes, por platônicos e também por estóicos com as obras, por exemplo, de Crisipo, por aristotélicos como Alexandre de Afrodisía com os escritos de Aristóteles, mas também já na escola de Epicuro. Comparou-se isto com a escolástica da Idade Média e falou-se, não sem razão, de uma época do comentário. Diferentemente do costumo atual, esse filosofar em forma de comentário era entendido como um "exercício" intelectual, que deveria auxiliar o leitor e comentador na salvação de sua alma e no seu retorno ao lar espiritual, sendo, assim, já uma parte do próprio filosofar: o fim em si mesmo de tal exercício, que para as escolas orientadas no imanente era atingir uma disposição melhor e mais sóbria da alma para a vida, no platonismo é funcionalizado como pressuposição para o empenho da alma de não só contornar-se as vicissitudes do imanente, mas superar o próprio imanente para poder alcançar a sua pátria transcendente. A disposição temática dos escritos de Plotino parte de questões morais, passa por problemas do mundo, da alma e do espírito e vai até o uno, prescrevendo, assim, para a leitura, aquele caminho que a alma do leitor ou ouvinte deve trilhar.

Também na filosofia da Antiguidade tardia ganha força um empenho pela compreensão enciclopédica de tudo que se pode saber, por universalidade, por concórdia ente as escolas filosóficas e vinculação de todas as tradições greco-romanas pagãs. Recipiente para a coleção da sabedoria e contexto para essa reconscientização é o platonismo, que desde Plotino e Porfírio e sobretudo a partir da pitagorização feita por Jâmblico portava traços teológico-religiosos cada vez mais fortes. Por isso, para os platônicos, os assim chamados oráculos caldeus, que são atribuídos a um certo Juliano e que remontam ao 2 ou 3 século d.C., podiam valer como testemunhos de sabedoria antiquíssima inspirada pelos deuses no mesmo nível da poesia órfica, dos hinos homéricos ou da história de Hesíodo. Plotino e Proclo (412-485 d.C.), o segundo platônico mais importante dessa época, têm em comum a conclamação ao ser humano para que encontre a sua verdadeira natureza e se torne "divino", isto é, encontre o caminho de volta à sua origem verdadeira, transcendente. Este aspecto soteriológico empresta à metafísica neoplatônica o caráter de um exercício intelectual/espiritual: "Despoja-te de todo imanente", pede Plotino, "Desperta o uno que está em ti e dispensa tudo o que é terreno", exige Proclo.

Por isso, a ética neoplatônica não mais introduz, como faziam o epicurismo ou o estoicismo, uma arte de viver apenas no imanente. É certo que a filosofia continua servindo à terapia da alma no imanente e à depuração interior do ser humano, mas agora com o objetivo de possibilitar à alma o caminho de volta à oriegem divina, transcendente. O retorno almejado pode ter êxito porque, conforme a opinião de Plotino, por ocasião da descida da alma, uma parte dela permaneceu naquele mundo que é transcendente e pode ser apreendido apenas intelecutal/espiritualmente (Enn. 4,7 [2] 10,30). Mais tarde, o abismo entre a alma humana e o seu lar intelectual/espiritual foi percebido como sendo cada vez maior e fez desaparecer a confiança na capacidade de poder efetuar pelas próprias forças o retorno almejado. Por isso, por exemplo, Proclo concedeu a determinadas práticas da religiosidade popular uma força auxiliar na salvação da alma. Todavia, isso ocorreu pela integração do religioso no contexto filosófico, e não pelo sacrifício da racionalidade filosófica ao entusiasmo religioso.

O interesse de Plotino estava voltado sobretudo para a ontologia, que ele concebia como teologia e da qual ele derivava de modo consequente os demais âmbitos do seu pensamento. Marcante no seu pensamento é, por um lado, a diferenciação platônica entre um mundo inteligível e um mundo sensível; por outro lado, o reconhecimento subjetivo de que a alma necessariamente tem de retornar para si mesma e então ascender à sua origem. De acordo com isso, todo o existente foi determinado pelo uno e recebe mediante o uno a sua perfeição. O uno flui por emanação para os estágios seguintes do ser, para o espírito e a alma, entendidos como hipóstases, e, no desdobraemento seguinte, para a matéria. O cosmo inteiro é estruturado pelo movimento de surgir do uno e de retornar a ele, sendo que o último estágio do retorno do uno não mais ocorre por meio do mero esforço intelectual, mas por meio do "fazer-se simples" (Enn. 6,9 [9]).

Também o cosmo intelectual/espiritual de Proclo esta estruturado hierarquicamente por uma pluralidade de estágios intermediários. Esses estágios são providos com nome de deuses tradicionais, aos quais a alma dirige orações e louvações para promover a sua ascenção. O anseio pelo retorno ao âmbito transcendente, a ênfase no aspecto religioso e a integração de práticas religiosas antigas, pelo visto, vinham ao encontro de uma carência de salvação correspondente da época, que se manifesta também no cristianismo florescente. É sintomático que os cultos (por exemplo o culto de Mitras), por sua vez, frequentemente se cobriam com um mantinho filosófico e para isso se serviam da "caixinha de temperos de Platão" (Tertualiano, anim. 23,5).

ERLER, Michael & GRAESER, Andreas, orgs. Filosofia Como Salvação da Alma. In:__ Filósofos da Antiguidade 2: Do Helenismo à Antiguidade Tardia. Editora Unissinos: São Leopoldo, 2003. p. 23-27

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Rousseau e a liberdade


Pedro Soares de Oliveira neto*
* Licenciado e Bacharel em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina – pedro_aimar@hotmail.com

Qual a origem da desigualdade entre os homens? Será ela sancionada pela lei natural? Com o intuito de responder a estas questões — propostas, em 1753, pela Academia de Dijon — o pensador Jean-Jacques Rousseau, afastando-se da atividade febril dos homens em sociedade, buscou o silêncio do campo. Isolando-se em uma propriedade rural, longe dos confortos da cidade e próximo aos apelos da natureza, tendo sob os olhos o ritmo lento e imemorial em que crescem as plantas e em que procriam, vivem e desaparecem os animais, tentou reviver mentalmente o estado primitivo da espécie humana, antes do advento das primeiras comunidades organizadas. Deste esforço imaginativo e criativo resultou um documento que serve como matéria de reflexão e inspiração para todos os que procuram uma saída para as desgraças auto-infligidas pelo próprio homem: o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Animal entre os animais, a vida do homem situava-se como que fora do tempo, em uma completa comunhão com a natureza, seguindo o movimento uniforme de forças inelutáveis. Assim como o animal, era guiado seguramente pelos instintos de que era dotado, aptidões plenamente suficientes para suprir as poucas necessidades que provava: a alimentação, o impulso à procriação, o singelo amor-de-si que ditava a cada um a preservação da própria vida. Descrevendo este estágio da humanidade, que bem poderia ser definido como a sua infância, Rousseau diz:
“Os únicos bens que [o homem] conhece no universo são o alimento, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome; digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, e o conhecimento da morte e de seus terrores é uma das primeiras aquisições que o homem fez, aos se distanciar da condição animal” (Discurso sobre a desigualdade, Primeira Parte, §18).
Mas, de que modo ocorreu este distanciamento, este desligamento do fluxo natural que permitiu o despertar para esta condição que lhe era peculiar, oferecendo ao homem a imagem e a previsão de sua destruição iminente na morte? Pois o animal não sabe o que é morrer, dado que não pode destacar-se do momento em que vive simplesmente, seguindo suas puras disposições naturais; ele não pode deslocar-se, como o homem, com o auxílio da imaginação, no tempo e no espaço. O ser natural é um com a Natureza em seu conjunto, não podendo separar-se, enfim, em um eu que o distinga de um outro. Segundo Rousseau, é uma faculdade especificamente humana, esta que lhe permite fugir à corrente dos instintos, e o nome que lhe dá é liberdade. A liberdade, então, para Rousseau, é como que uma falha ou um desvio que provoca no homem a sua saída para fora dele mesmo: é a condição, não apenas de seu progresso no aperfeiçoamento de suas faculdades mentais, mas também de sua infelicidade no afastamento do paraíso terrestre em que se encontrava inicialmente.
Neste ponto de sua trajetória, o ser humano assume a sua história e pode dispor tanto de seu passado (pelo uso da memória) como de seu futuro (no qual é capaz de projetar-se com as ações que imagina). Mas para que isso ocorresse foi preciso que ele, partindo de uma vivência que se resolvia quase que imediatamente em uma pura exterioridade, em um contato direto com as coisas (e com os outros indivíduos) que não deixava vestígios, se desdobrasse em uma consciência cada vez mais complexa e plena do ambiente que o circundava.
Desde então a vida em comum se tornou para ele algo indispensável, e as relações familiares fortaleceram cada vez mais os laços de amizade e de simpatia entre homens, mulheres e seus filhos. Amparados uns nos outros, conheceram um período de segurança e uma abundância diversa daquela que gozavam separados no estado de natureza  primitivo. Capazes de comparar as impressões anteriores com as que viviam presentemente, perceberam que as sensações podiam ser mais doces ou mais amargas, dependendo da circunstância em que se encontravam. Isto os levou a desejar prolongar sempre mais os estados de prazer, guiados pela miragem de uma perfectibilidade sempre crescente. Esta virtude de abstrair um ideal e tentar conformar a realidade a esta idéia, segundo Rousseau, foi a causa de uma busca incessante por novas formas, cada vez mais refinadas, de aplicar as faculdades latentes no homem. Foi também a partir deste momento, em que cada um reconheceu o outro diante de si como um igual, que a possibilidade (e também a necessidade) de uma linguagem se fez sentir.
Por outro lado, à medida que cada indivíduo desenvolvia tais faculdades, o desejo de reconhecimento por seus iguais tornou-se difícil de satisfazer. A necessidade de imposição de sua própria existência sobre a atenção dos demais fez que o amor-de-si (voltado para a simples preservação de cada um) degenerasse em uma supervalorização egoísta no amor-próprio. A esta altura o homem estava já completamente acorrentado àquelas relações sociais que pareciam, a princípio, dar uma dimensão nova e positiva à sua existência.
A afirmação da própria individualidade foi marcada, em seguida, por um impulso para apropriar-se de tudo, seja dos bens materiais, seja da vida dos outros seres. Rousseau comenta esta tendência nascente com palavras sombrias:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando ou buracos, tivesse gritado a seus semelhante: ‘Fugi às palavras deste impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todo, e que a terra não é de ninguém.” (Discurso sobre a desigualdade, Segunda Parte, §1).
Estabelecido o direito de propriedade, mostrou-se evidente que forças individuais não poderiam manter tais posses. Sem um poder coercitivo abrangente, nada podia impedir que bandos de invasores se apossassem violentamente de qualquer bem (terras, colheitas, animais, filhos e mulheres etc.) acumulado nas mãos de um único proprietário indefeso. Rousseau afirma claramente que a formação de um Estado com poder absoluto sobre todos os súditos teria sido um estratagema urdido por aqueles que tinham acumulado um grande quantidade de bens e que, por isto mesmo, eram os que mais tinham a temer em tais circunstâncias.
Podemos questionar agora a aparente contradição do conceito de liberdade em Rousseau. Por um lado, significa a expulsão de um estado de natureza idílico, uma perversão do animal no homem. Por outro, porém, ela é aquilo que ele perdeu ao abdicar de seu direito natural, em função de uma vida social organizada em torno do poder absoluto da soberania. No entanto, lembremos que, apesar de ser a causa de seu rompimento com a natureza, a liberdade é ela mesma um dom natural no ser humano. Todas as paixões, desejos, abusos derivados da imperfeição obrigatória das leis, as aquisições das artes e das ciências, assim como as demais atividades supérfluas que se multiplicaram com o convívio social são apenas desenvolvimentos de potencialidades que já se encontravam no homem. É verdade que o excesso de todas estas coisas representam algo de nocivo para a humanidade, mas Rousseau parece indicar que, mais uma vez (já que um retorno ao estado de natureza original seria impossível), o homem poderia exercer a sua liberdade, dando um novo salto em sua história; poderia sacudir de seus ombros o jugo dos déspotas que traíram aqueles que depositaram neles sua confiança e seu poder. Rousseau aponta decididamente para a revolução como um meio de refazer sobre outras bases o contrato social deturpado, nas raízes, pelos senhores. Porém, logo que uma nova ordem fosse estabelecida, ele previa que esta inevitavelmente se deterioraria em seguida, por força das contingências do mundo em que vivemos. Assim, o único modo de manter viva a liberdade dos cidadãos seria a possibilidade de, guiados por uma assembléia perenemente ativa, aperfeiçoar sem cessar as condições de toda a sociedade, promovendo não só a igualdade de direitos, mas a igualdade de posses para todos. Depois das previsões de Rousseau, efetivamente, mais de uma revolução foi traída, e homens como Trótski, por exemplo, que partilharam de sua visão ao propor o conceito de revolução permanente, foram esmagados mais de uma vez. Não importa: o homem foi capaz se adaptar para a sobrevivência durante o longo percurso da espécie; por que não seria novamente capaz de projetar e fazer brotar, em outros terrenos, aquele germe de liberdade que a natureza nele depositou como uma mãe benfazeja?
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Fonte: http://www.consciencia.org/rousseau-e-a-liberdade
Referência Bibliográfica:
ROUSSEAU, Jacques. A Origem da Desigualdade Entre os Homens. Ed. Escala. São Paulo, 2007.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A LIBERDADE E A FILOSOFIA

 
Sobre este autor(a)
Enfermeira e Filósofa. Especialista em Bioética e Enfermagem em UTI. Leciona Filosofia para o Ensino Médio no Estado de São Paulo e pretende lecionar Bioética e Pediatria em escolas técnicas de enfermagem. Atualmente cursa Psicopedagogia Clínica. Interessa-se por ficção, bioética, ética, política e ...

A liberdade é motivo para reflexão de filósofos desde muito antes de Sartre, tanto na área do direito, especificamente, como na tradição filosófica em si.
Na declaração dos direitos do homem e do cidadão consta que liberdade individual caracteriza-se pelo poder de "fazer tudo o que não for nocivo a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada um não tem outros limites além daqueles que asseguram aos outros membros da sociedade dos mesmos direitos" (Vicente, 1985, v. 07, p. 2159).
O interesse pelo tema da liberdade humana vem permeando os estudos dos filósofos desde seu princípio. Em Platão podemos perceber que a liberdade individual é capaz de atribuir mérito ou demérito, segundo os atos realizados pelo próprio indivíduo, sendo que as leis são o peso utilizado para denominar o mérito ou não. Podemos ainda apontar o conceito de liberdade assegurado pelos estóicos (Vicente, 1985, v. 5) de que seria uma adesão espontânea à necessidade natural.
Na Idade Média os limites da liberdade eram definidos segundo conceitos elaborados partindo do conflito razão X teologia. Então eram elaborados basicamente pela religião predominante na Europa, o cristianismo.
Continuando a linha de análise, na modernidade temos o conceito de Liberdade elaborado por Descartes, sendo que ele apontou para o que denominou liberdade de indiferença, caracterizada pela "adesão sem razão a uma de duas contrárias igualmente possíveis" (Vicente, 1985, v.7, p. 2160), e afirmou ser esse o grau mais baixo de liberdade humana. Podemos neste ponto perceber a dicotomia travada entre Teologia X Razão, em que Descartes acredita que o que é feito sem o uso da razão não assegura a liberdade completa.
Leibniz denominou "toda a espontaneidade racional" de liberdade (Vicente, 1985, v.7, p. 2137), desde que não houvesse a necessidade lógica. Assim, agir por estar inclinado e não necessitado seria agir livremente.
Analisando ainda os diversos conceitos filosóficos acerca da liberdade, temos de Spinoza a descrença no conceito de liberdade, sendo que no ponto de vista do filósofo, o conceito de liberdade não passa de uma ilusão produzida pela ignorância das verdadeiras causas. Para Spinoza, a liberdade verdadeira não é habilidade de escolher algo em detrimento de outro, mas sim a habilidade de agir de acordo com a natureza de uma pessoa e agir sozinha (Bergman, 2004). Deus é livre por que é infinito, já para os humanos, a liberdade consiste em "entender nossos desejos e nosso lugar no universo como uma causa de deus" (Bergman, 2004, p. 55).
Kant definiu a liberdade como um postulado da razão prática, caracterizado pelo imperativo categórico. A declaração dos direitos do homem e do cidadão certamente baseou-se no conceito kantiano de liberdade:"Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se mediante tua vontade a lei universal da natureza" (Kant, 1785 apud Marcondes, 2007, p.123).
Como é possível averiguar, o tema liberdade tem sido estudado por diversas escolas filosóficas em todo o decorrer da própria filosofia.

REFERÊNCIAS

BERGMAN, G. Filosofia de banheiro: Sabedoria dos maiores pensadores mundiais para o dia-a-dia. Tradução: Caroline Kazue Ramos Furukawa. São Paulo: Madras, 2004.
KANT, 1785 apud JAPIASSÚ, H e MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006.
SILVA, AS. O conceito de Liberdade segundo a teoria existencialista de Sartre. Monografia. Brasília: Universidade Católica de Brasília/UCBV, 2010. 42 p.
VICENTE, O (org.). Enciclopédia Didática de Informação e Pesquisa Educacional. v. 5. 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Iracema, 1985.
VICENTE, O (org.). Enciclopédia Didática de Informação e Pesquisa Educacional. v. 7. 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Iracema, 1985.

sábado, 4 de agosto de 2012

Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana

Sed dignitaten dicit principaliter retione formae
 São Boaventura
 Prof. André Marcelo M. Soares, Ph.D.*
O conceito de dignidade é um dos mais relevantes para as reflexões ética, política e jurídica. Por esta razão, a sua definição filosófica é uma tarefa árdua. A dignidade não é algo que se aplica exclusivamente ao ser humano, mas, quando se fala em dignidade humana, é impossível deixar de lado o conceito de pessoa, que provoca uma variedade de questionamentos de ordem ontológica, antropológica e ética[1]
A expressão dignidade da pessoa é a combinação de dois substantivos, na qual a dignidade figura como termo valorativo aplicado a um sujeito que necessita se firmar como realidade ontológica (pessoa). Isto nos permite, de antemão, constatar que é possível refletir sobre o seu significado por dois caminhos: o ontológico e o ético. Através da via ontológica, pode-se conhecer uma realidade específica entre outras, que é a de ser pessoa. A via ética, por sua vez, permite pensar as razões alegadas para dizer que alguém é digno[2]
A origem etimológica da palavra pessoa encontra-se no termo grego prosôpon, que, longe de possuir um sentido ontológico, se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais. Apesar de Platão (cerca de 427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) aplicarem os conceitos de substância, natureza e essência, com seus respectivos matizes, ao homem, o pensamento grego desconhecia a realidade de ser pessoa. Ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão antropológica a partir de uma perspectiva cosmológica, segundo a qual o ser humano era compreendido como a realidade natural mais elevada[3]. Todavia, apesar de ser um animal racional, portador de logos e possuidor de uma alma intelectiva, não só vegetativa ou sensitiva como nos demais seres da natureza, nem os gregos e nem os romanos conseguiram perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser pessoa
É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos. Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional a sua capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.
No cristianismo, o conceito de pessoa teve um sentido teológico, por se aplicar primeiramente às pessoas divinas. A seguir, foi empregado para definir o ser humano, até então concebido simplesmente como homem[4]. Para o pensador franciscano Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524), para o qual a pessoa é “uma substância individual de natureza racional”[5]. De acordo com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com mais profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. Deste modo, a pessoa “define-se pela substância ou pela relação; se se define pela relação, a pessoa e a relação serão conceitos idênticos”[6]. Em outras palavras, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural e, portanto, inerente a sua própria natureza[7]
A definição de Boécio, seguida por muitos outros filósofos, tem como núcleo o conceito aristotélico de ousia (ou substantia), utilizado fundamentalmente para definir as coisas naturais. Nesta concepção, a pessoa, tal como as demais coisas, é concebida como hypóstasis (ou suppositum), embora mais digna por ser dotada de razão. Para o Doctor Seraphicus, quando se trata das pessoas divinas, esta noção pode parecer estranha. Afinal, de forma alguma é possível interpretar as pessoas divinas como coisa. É por este motivo que ele utiliza o conceito de relação para referir-se, por analogia, à pessoa humana. O fato de o homem ser concebido como imago Dei significa que, além de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu criador. 
Segundo Boaventura, “a pessoa é a expressão da dignidade e da nobreza da natureza racional. E esta nobreza não é uma coisa acidental, mas pertence à sua essência”[8]. Cada homem, em particular, foi criado por Deus não seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina[9]. É neste fato que repousa a dignidade humana
A partir do século XVIII, sobretudo com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade. De acordo com Kant, a dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura capaz de se submeter livremente as leis morais que são reconhecidas como procedentes da razão prática[10]. Tal capacidade se deve ao fato do ser humano possuir, além de uma dimensão fenomênica, que o submete às leis físicas que regulam o universo e a ele mesmo, uma dimensão noumênica, que o torna um ser subjetivo, livre, constituído por uma interioridade e por uma consciência moral. Esta dimensão é a que lhe possibilita ser autônomo, isto é, um sujeito moral que reconhece o valor e a obrigatoriedade das normas que ele mesmo se impõe, sendo fiel ao imperativo categórico[11].
Para os pensadores da pós-modernidade, a dignidade humana nada tem a ver com os esquemas assinalados anteriormente. Nem as qualidades intelectuais (a razão), nem os pressupostos metafísicos (ontologia do ser humano) e nem a capacidade moral (autonomia) fundamentam a dignidade humana. Ela resultaria, portanto, de uma ação institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático, decidiriam de forma contingente e convencional (o único modo possível) o grau de sua utilidade ou eficácia para resolver conflitos sociais. 
Segundo o neopragmatismo pós-moderno de Richard Rorty (1931-2007), os mecanismos da emotividade humana (especialmente a compaixão) explicam mais claramente como as abstrações racionalistas transformam em tendência social o reconhecimento de uma dignidade que converte em imoral o sofrimento desnecessário a quem se convencionou considerar como membro desta sociedade[12]. Os ingredientes básicos da perspectiva rortyana são: a contingência da dignidade humana, por um lado e o marco emotivista, onde se situa a raiz da defesa da dignidade, por outro. 
Frente à racionalização do ser humano no pensamento grego clássico, à ontologização da pessoa na tradição cultural cristã e jusnaturalista e à autonomia do indivíduo na filosofia moderna germânica, o filósofo norte-americano Richard Rorty propõe um retorno ao pensamento de David Hume (1711-1776), segundo o qual os sentimentos e a utilidade social constituem o motor da ação moral e a base de qualquer direito humano[13]
Interpretando os diferentes modelos de dignidade, pode-se afirmar que o modelo grego clássico, o kantiano moderno e o neopragmático pós-moderno foram elaborados a partir de um tipo de reflexão denominada de fundamentação condicionada, considerando que a afirmação da dignidade humana depende do desenvolvimento e execução de determinadas qualidades intelectuais e morais da pessoa. No caso do neopragmatismo, os critérios escolhidos são os de utilidade social, conveniência e capacidade. Já a perspectiva ontológica, própria da tradição cristã e do jusnaturalismo, oferece uma fundamentação incondicionada, na qual a dignidade não depende de fatores externos ao ser humano, nem sequer do exercício de faculdades intelectuais ou morais, mais desenvolvidas nos adultos. Nesta perspectiva, a dignidade humana não está condicionada e não se sujeita às convenções jurídico-sociais.
Fonte: http://www.presbiteros.com.br

* Filósofo, mestre e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA – Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).
[1] Cf. ADORNO, R. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998.
[2] Cf. WOJTILA, K. Metafisica della persona. Milano: Edizioni Bompiani Il Pensiero Occidentale, 2003; MOUNIER, E.  Il personalismo. Roma: Editrice AVE, 1999; VV.AA. Persona e personalismo. Aspetti filosofici e teologici. Padova: Gregoriana, 1992.
[3] Cf. FRAILE, G. Historia de la filosofia. Vol. I, Madrid: BAC, 1990, p. 370-381, 456, 464, 468-470, 487-504.
[4] Cf. JONES, D.A. The soul of the embryo: an enquiry into the status of the human embryo in the christian tradition. London/ New York: Continuum, 2004, p. 125-140.
[5] II Sent., d. 25, a. 2, q. 2 ad 4.
[6] MTr, q. 2, a. 2, n. 9. (V, 66s).
[7] Cf. MERINO, J.A. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993, p. 71.
[8] II Sent., d. 3, p. 1, a. 2, q. 2ad 1 (II, 107).
[9] Cf. RAPONI, S. Il tema dell’immagine-somiglianza nell’antropologia dei padri. Roma: Teresianum, 1981; RUIZ DE LA PEÑA, J.L. Immagine di Dio: antropologia teologica fondamentale. Roma: Borla, 1992; BÜHLER, P. Humain à l’image de Dieu. La théologie et lês sciences humaines face au problème de l’antropologie. Genève: Labor et Fides, 1989; ANDERSON, R. On being human. Essays in theological anthropology. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.
[10] Cf. HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 179-189.
[11] Cf. KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins fontes, 2002, p. 33-35; HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 172-174; PASCAL, G. O pensamento de Kant. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 108-126.
[12] Cf. RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 59; RORTY, R. Derechos humanos, racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S; HURLEY, S. De los derechos humanos. Madrid: Trotta, 1998, p. 117-136.
[13] Cf. CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66-68.

sábado, 28 de julho de 2012

A FILOSOFIA PATRÍSTICA O CRISTIANISMO NASCENTE E A FILOSOFIA ANTIGA

Quando o Cristianismo entrou em cena pretendeu ser ao mesmo tempo verdade teórica e informação prática da vida. "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", declara o seu fundador. A verdade é considerada como algo de absoluto e eterno, porque é verdade não somente humana mas também divina revelada. "O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão". É também a informação da vida, o "caminho e a vida" é algo de absolutamente certo, conduz seguramente à "salvação". Com uma tal segurança não estava habituada a filosofia antiga. Não se apresentava ela como a encarnação do Logos e da eterna sabedoria mesmo, mas queria ser apenas amor da sabedoria. A verdade porém ela já queria oferecê-la e também pretendia a direção dos homens; isso o foi ela desde o começo e particularmente na época helenística, quando o antigo mito se desvaneceu e a filosofia tinha que cuidar das almas, para substituí-lo. Desta atitude, parte idêntica e parte diversa, deste encontrarem-se na busca do mesmo fim e diferirem na escolha dos meios e do caminho para o fim, resulta a posição do Cristianismo nascente relativamente à filosofia antiga: ele a rejeita para de novo aceitá-la.
a)    Paulo
Já com PAULO é assim. Começa rejeitando a "sabedoria deste mundo" para de novo aceitá-la, chegando mesmo a apelar pára o seu testemunho em apoio do seu próprio sentir. 1 Cor. 1, 19 escreve: "Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes. Onde está o sábio? onde o doutor da lei’í onde o esquadrinhador deste século? Porventura não tem Deus convencido de estultícia a sabedoria deste mundo?… Porque tanto os judeus pedem milagres, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos o Cristo crucificado, que é um escândalo de fato para os judeus e uma estultícia para os gentios, Mas para os que têm sido chamados, assim judeus como gregos, pregamos a Cristo, virtude de Deus e sabedoria de Deus". E em Bom. 1, 19: "Porque o que se pode conhecer de Deus lhes é manifesto a eles (aos pagãos) porque Deus lho manifestou. Porque as cousas dele invisíveis se vêem depois, da criação do mundo, consideradas pelas obras que foram feitas." Com isto de novo se concedem à razão natural os seus direitos. E no seu discurso no Areópago chega Paulo a citar filósofos gregos para provar sua tese cristã (At. 17, 28).
b)    Os   Padres       
a) Posição negativa. — Esta atitude de novo se manifesta nos primeiros escritores cristãos. JUSTINO o Mártir sente-se insatisfeito com as velhas escolas dos filósofos: os estóicos nada sabem de Deus, os peripatéticos são ávidos por dinheiro, os Pitagóricos são excessivamente teóricos, os platônicos demasiado ousados nas suas afirmações. Só para os cristãos a verdade se realizou, que sabem morrer por ela. Minúcio Félix vê em Sócrates um charlatão e TeRtuLIano, em Platão, o pai de todas as heresias. Que têm que ver Atenas com Jerusalém, a Academia com a Igreja, os descrentes com os crentes, pergunta ele. TERTULIANO sobretudo alargou ao extremo o abismo entre a religião cristã e a filosofia antiga, de modo que para ele fé e ciência se opõem diametralmente. N de carne Christi escreve o seguinte: "O Filho de Deus crucificado: Nós não nos envergonhamos, porque é vergonhoso; o Filho de Deus morreu: é absolutamente crível por ser isso inepto (prorsus credible quia ineptum est); e, sepulto, ressurgia: é certo, porque é impossível". Estas palavras, que TertuliaNo  aliás pronunciou quando já não pertencia à Igreja, mas à seita montanista, formam o fundo ideal da conhecida expressão credo quia absurdum est", que, demais, sob esta forma, não é um dito histórico, embora na realidade corresponda ao sentir de TERTULIANO.
β) Posição positiva, — Por outro lado JustiNo não se chama somente Mártir mas também filósofo (philosophus et martir).    É  que freqüentou então os filósofos.    E isto por querer defender o Cristianismo. Como apologeta tinha ele que falar de um terreno comum, que permanecia acessível e cordial aos homens pagãos, e este era a filosofia.
αα) Os apologetas. — O mesmo se deu também com os outros apologetas: MinUcio Félix, Aristides, Atenágoras, Lactâncio e mesmo Tertuliano. Para remate, chegaram até a assumir o exterior da antiga filosofia, o manto dos filósofos, a pregação errante, a diatribe estóico-cínica e suas formas, a cria e a apotegmática, como também se tirou de bom grado proveito da antiga crítica do politeísmo, já feita pelos estóicos e epicuristas.
 ββ) Escola catequeta de Alexandria. — Um segundo passo para a filosofia foi dado pela escola dos catequetas de Alexandria. Esta metrópole do helenismo cosmopolita já rompera, pelo seu (genius loci, todas as barreiras apertadas e estimulou todas as formas de síntese. Mas especialmente aí também atuava a tradição filoniana com a sua tentativa de conciliar a religiosidade do Antigo Testamento com a . Neste espírito se movem os grandes representantes da escola catequética alexandrina, Panteno, Clemente Alexandrino e Orígenes. é do último a seguinte comparação muitas vezes repetida nesta matéria: como os filhos de Israel, _no seu êxodo do Egito, levaram consigo os utensílios de ouro e de prata, do país, assim também devia a Fé tomar posse da sabedoria do mundo e da filosofia. E Clemente se serve da fórmula ainda mais clara para uma possível relação entre a^ fé e a ciência: a filosofia é um presente da Providência pela qual, os gregos deviam ser preparados para Cristo, de modo semelhante como deviam sê-lo os. judeus pelo Antigo Testamento.
γγ) Os capadócios. — Um terceiro momento, que fazia inclinar-se a balança para uma postura positiva do Cristianismo em relação à filosofia, é, o expresso pela atitude dos três grandes capadócios: Gregório Nazianzeno, Basílio o Grande e Gregório Nisseno, que praticamente manejam o grande instrumento da filosofia grega na sua exposição da doutrina cristã; e Basílio escreveu mesmo um tratado próprio: "Aos jovens, para saberem tirar proveito da filosofia pagã".
δδ) S. Agostinho. — A fórmula definitiva no-la dá S. Agostinho. O que os filósofos disseram de verdadeiro e conforme à fé — assim pensa ele — não só não o devemos repudiar, mas reclamá-lo para o nosso uso próprio como de possuidores injustos, e isto em duplo sentido. Primeiro, porque é bom educar formalmente o espírito para chegarmos a pensar e falar claro e bem. É o ideal do distincte et ornate dicere, que tem em mente, de que Cícero é um exemplo e de quem Agostinho tanto. aprendeu. Demais disso, a filosofia deve servir para fecundar os princípios especulativos da fé,. i. é, ajudar a compreender-lhe o sentido, a conexão, a estrutura, a sistemática, os fundamentos e as conseqüências, de modo lógico-racional tanto quanto possível. E então a fé vem a ser verdadeiramente uma fé científica. E agora surge a expressão que, a partir deste momento, serviu de leitmotiv a toda a filosofia medieval: Intellige ut credas, crede ut intelligas. Isto é, lê no íntimo do ser para creres e crê para poderes atingir o íntimo, do ser!
c)    Conseqüências e problemas
A evolução das relações entre a religião e a filosofia, decidida finalmente pela posição de Agostinho em favor de. uma síntese positiva, foi de importância capital até hoje para a história do ocidente. Agora podia a fé tornar-se teologia, o ensino das doutrinas sagradas, literatura; o Cristianismo, cultura. Seus representantes já não precisavam, viver num (gueto, mas podiam calcar o solo do fórum, os auditórios das universidades, as sedes das.reuniões dos parlamentos e dos ministérios. O Cristianismo tinha já dito sim ao mundo e já não queria convertê-lo, pois o condenava. Mas a tensão interna com isso não desaparecia. A problemática perdurava. Se o pensamento natural e a revelação sobrenatural são realmente algo de "diferente"’, poderá haver entre eles algo de comum? A oposição latente irrompe sempre de novo com particular estridência, entre os antidialéticos e Pedro Damião, em muitos círculos de místicos, bem como entre os seus antípodas, os representantes de uma cultura e política autônomas; e, por último, na teologia dialética, onde a fé de novo surge a modo de paradoxo, como outrora com Tertuliano. No fundo, toda esta problemática é da espécie da que já encontramos na doutrina de Deus transcendente e que contudo, na qualidade de criador, pode ser conhecido por meio da criação. Ou na doutrina da imaterialidade da alma humana e que todavia é a forma do corpo. Ou na do homem, submetido à causalidade universal, devendo porém permanecer livre na sua vontade. E então aqui se rasga de novo um dualismo e de novo pontes são lançadas. E nesta metódica do es
pírito, que deve fazer .sem omitir aquilo, está a profunda  problemática  das cousas.        . .
d)    Fontes   dos   Padres
Mas esse sim foi decisivo para a filosofia antiga. Nem todas as dissecações de pensamento podiam se considerar igualmente como fontes para nelas a gente se abeberar.
α)  Cépticos e epicuristas. — Quase despidas de valor eram as idéias dos cépticos ,e epicuristas. Só ocasionalmente se lhes podiam aproveitar os argumentos contra o politeísmo e a religião popular pagã.
 β) Aristóteles. — Mas também o aristotelismo ficava de fato sem grande importância para a patrística, embora as irradiações dele não fossem tão fracas como antes se pensava. Em face da concepção bíblica de Deus e da moral religiosa da patrística, o conceito aristotélico de Deus era demasiado pálido, e a ética de Aristóteles nimiamente secular. Contudo, podemos rastrear influências dos escritos da mocidade de Aristóteles em Clemente Alexandrino, Basílio, Agostinho, sinésio. E conceitos como os de essência, substância, natureza desempenham desde cedo um papel nas controvérsias trinitárias e cristológicas. Mas já no fim da Patrística, João Filopuno e João Damasceno se inspiram ex-professo no patrimônio de pensamentos aristotélicos. O primeiro escreveu comentários e muitos tratados de Aristóteles, que foram traduzidos para o siríaco. E agora os nestorianos sírios e os monofisistas defendiam com conceitos aristotélicos — e não com vantagem para Aristóteles, no pensar dos Padres — a sua tese da coexistência, em Cristo, de duas pessoas e duas naturezas, e pois havendo para uma pessoa só uma natureza.
γ) O Estoicismo. — De grande importância, pelo contrário,  foi  para  o  pensamento  do   Cristianismo  nascente  o estoicismo, diretamente par meio de Sêneca e de EpitECto; indiretamente, pelos ecléticos romanos, como Cícero e VarrÃo. Ambrósio copia o tratado da Cícero De officiis, Clemente Alexandrino reproduz passos inteiros de Musônio Rufo, Agostinho houve nos estóicos conceitos muito fundamentais do seu pensamento, como a doutrina da lei eterna, das rationes seminales e da Cidade de Deus. O contacto com o estoicismo foi tão estreito, a ponto de fazer nascer a legenda da correspondência entre Paulo e Sêneca.
δ) Platão. — Como fontes de primeira ordem surgem os platônicos. "Ninguém esta tão perto de nós como estes", diz Agostinho, a -sua ética pura, sua abdicação do mundo, sua predileção pelo supra-sensível, o mundo das Idéias e a metafísica, a sua escatologia, a sua inquietude na busca de Deus deixam bem transparecer o sentimento da afinidade eletiva. Sobretudo a doutrina do além foi do agrado dos Padres. Mas conceberam o εχει do genuíno platonismo no sentido acentuadamente  realista da Bíblia. "Esperamos um novo céu e uma nova terra onde habitará a justiça" (2 Petr. 3, 13). Não é fácil precisar até que ponto influíram nos Padres diretamente as obras de Platão ou os seus pensamentos, hauridos quer em florilégios quer no patrimônio corrente das idéias do tempo, onde havia muito tempo tinham penetrado; de modo que é possível haver uma influência, mesmo quando não se pode pressentir uma  determinada obra imediatamente ou citá-la. O método histórico-literárío usual de ir assinalando as citações não basta para se rastrearem as irradiações do platonismo no pensamento e na terminologia metafísica e religiosa do helenismo. Pois Platão criou a linguagem hierática para todos os tempos subseqüentes e já por ai exerceu indiretamente enorme influência" (Reitzenstein). Contudo, Justino, AtenágoRas, Clemente Alexandrino, Orígenes, Eusébio Cesariense citam determinadamente lugares das várias obras de Platão como a República, o Fédon, o Fedro, o Górgias, a Apologia, o Críton, o Filebo, o Timeu, o Menexemo, o Crátilo, o Teeteto. o Sofista, as Leis, o Epinomis e as Epistolas. Metódio não somente cita, mas imita de muitos modos o Banqueta, e Gregório Nisseno, igualmente, o Fédon. Jerônimo censura os latinos por apenas terem conhecido algo de Platão. Contudo, se não o podiam ler em grego, era-lhes acessível a tradução de Cícero ou de Calcídio.    Agostinho cita o Fédon, que leu porventura na tradução de Apuleio. Este bem podia ter-lhe fornecido, pelos seus escritos De deo Socratis e De dogmate Platonis o essencial da doutrina de Platão.
 ε) Filo. — O que particularmente acomodou o platonismo à patrística foi a obra de Filo Alexandrino. Inspirado na religião bíblica, lançou várias pontes para os estóicos neopitagóricos, sobretudo para o platonismo. "Os gregos dizem a respeito dele que, ou Platão é um Filo ou Filo um Platão, tão grande é a semelhança, entre eles, dos conceitos e das expressões" (Jerônimo). É sobretudo a especulação sobre o Logos a agitada por Filo. Assim, procede de Filo uma grande parte do platonismo de Clemente Alexandrino e de Orígenes. O Último sobretudo foi um ponto de confluência da antiga sabedoria das mais variadas origens, mas principalmente do platonismo. Porfírio dele refere: "Platão era o seu companheiro inseparável, as obras de Numênio e de Crônios, de Apólofanes, Longino e Moderato, de Nicômaco e dos homens célebres da escola neopitagórica, ele as manuseava continuamente. Também usou os livros do estóico Quêremon e de Cornuto. "Este platonismo de colorido filonico, estóico e neopitagórico, por sua vez Orígenes o transmitiu a Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório Nisseno, Eusébio Cesariense e outros; e, entre os latinos, a Mário Vitorino, Hilário Pictaniense, Eusébio Vercelense, Rufino e sobretudo Ambrósio, de quem Jerônimo refere que estava cheio de reminiscências de Orígenes.
ξ) Médio platonismo. — Um acesso mais largo ao pensamento cristão abrem à filosofia antiga os homens do chamado médio platonismo: Plutarco de Queronéia, Gaio, Apuleio, Albino, Máximo de Tiro, Numênio.
η) Neoplatonismo. — Dos seus e de outros princípios, desenvolveu-se o neoplatonismo, cujos aderentes proporcionam por sua vez valiosos auxílios à filosofia patrística. Lendo-se as Eneadas de Plotino fica-se admirado da consonância de terminologia, e de todo o conteúdo de idéias, sobretudo da afinidade com as concepções éticas, religiosas e místicas da vida e da íntima conexão com o espírito do Cristianismo. As Eneadas influem sobre Gregório Nazianzeno, Gregório Nisseno, Eusébio, Cirilo Alexandrino, em particular sobre Agostinho, que o leu na tradução de Mário Vitorino.   Ainda por muitos outros canais o neoplatonismo deflui para o Cristianismo: … por PorFírIo, JámBLICo, Teodoreto de Ciro, Nemésio de Emesa, Cláudio Mamerto, SiNésio Cirinense, Simplício, MacrÔNio, – . Marciano Capela, CalcíDIo, Boécio e, mais que todos, por Dionísio Pseudo-areopagita, por cuja boca fala Proclo ao Cristianismo. Por fim, João Filopono e João Damasceno, que também agora valorizam Aristóteles.
θ) Neopitagorismo. — As influências neoplatônicas freqüentemente se entrelaçam com correntes neopitagõricas, como é o caso de APolóniO de TIAna, NUMÊnio, LonGino, MOderato, Nicômaco, de modo a ser muitas vezes difícil fixar com exatidão as idéias no seu lugar histórico.
e)    Sincretismo ?
Vivemos justamente na época do sincretismo, e "em nenhuma parte foi maior a interpenetração do que na história espiritual dos dois primeiros séculos da nossa era" (Bréhier). Exemplo disto oferece a palavra retrocitada de Jerônimo sobre Orígenes, segundo a qual nele tudo converge, que se tratou aqui de distinguir. Todavia o pensamento cristão vai rasgando com. segurança o seu caminho. Pode-se aplicar à inteira dependência histórico-ideal da patrística, em relação a filosofia grega, as palavras de Tomás de Aquino sobre as relações entre Agostinho e as doutrinas neoplatônicas: "Agostinho está cheio de doutrinas platônicas; o que ele acha se, apropria a si, se vê que concorda com a fé; mas se não concorda, adapta, melhorando" (S. Th. I, 84, 5).
Fonte: Ed. Herder
Trad. Alexandre Correia
Bibliografia
R. ARNOU, Platonisme des pères. Dict. théol. cath. Prümm, Der christliche Glaube und die alte heidnische Welt (1935) (A fé cristã e o antigo mundo pagão). Do mesmo: Das Christentum als Neuhetserlebnis   (1939)    (O Cristianismo como vivência moderna).