terça-feira, 8 de novembro de 2011

A atualidade do pensamento de Duns Scotus.

Por Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM

 
Duns Scotus (1265/6 – 1308) foi, com razão, considerado um dos expoentes máximos da “escola franciscana”. Suas intuições e sistematizações teológicas têm, neste sentido, marcado o desenrolar de uma específica maneira de refletir teologicamente, que nos foi legada pela tradição com o nome de “teologia franciscana”. Indagar, portanto, acerca das posições teológicas de Scotus, segundo nos parece, pode se tornar uma grande oportunidade. Pode se converter, de fato, na ocasião propícia para se resgatar nossa mais genuína identidade franciscana e, consequentemente, recuperar sua peculiar relevância para o “nosso tempo”.
Ao tratarmos, portanto, do pensamento de Scotus não podemos deixar de nos perguntar pela sua ‘relevância’, vale dizer, pela importância de suas reflexões teológicas para o “nosso tempo”. A consciência que estamos atravessando uma crise epocal tem-se tornado um lugar-comum. Em âmbito teológico, verifica-se o reflexo desta crise na forma específica de uma profunda crise dos assim chamados “paradigmas teológicos”. Adverte-se hoje a necessidade de se recorrer a paradigmas mais amplos e, ao mesmo tempo, mais flexíveis que permitam à teologia pensar os seus vários temas na sua permanente inter-relação, desentranhando assim a intrínseca abertura de cada evento ou experiência àquela dimensão mais global e complexa da inteira realidade. Para tanto, torna-se imprescindível ampliar, ou, em certos casos, até substituir, os paradigmas utilizados pela teologia moderna e contemporânea.
Urge, portanto, repensar a fé na sua mais intrínseca relação com a totalidade e a complexidade da vida e do cosmos. Por esta razão, a pergunta de fundo que guiará nossa incursão pela teologia de Scotus é precisamente esta: de que maneira suas intuições e suas reflexões podem nos auxiliar na tentativa de elaborar reflexões mais pertinentes, mediante o recurso a paradigmas mais afins aos desafios e às demandas postos à reflexão teológica atual?
Salientamos, de início, que a singularidade de Scotus não consiste propriamente no exercício de um pensamento alheio à complexidade do labor teológico de seu tempo. E o tempo de Scotus, como sabemos, é marcado por graves lacerações e, por isso mesmo, caracterizado por inusitadas possibilidades. Diríamos que a genialidade do ilustre teólogo franciscano consiste justamente na capacidade por ele manifestada de intuir os reais desafios de então e de saber problematizá-los no bojo mesmo da tarefa teológica. Imerso em um específico contexto no interior do qual a teologia se sentia radicalmente confrontada pelo saber das incipientes universidades, Scotus assume com particular gravidade o ônus de repensar as bases e o processo mesmo de constituição da teologia enquanto ciência. Não sucumbe face aos novos desafios por mais que parecessem ameaçadores. Assume a incumbência de pensar radicalmente a fé cristã, pois convencido está de que fé e razão não constituem espaços separados, nem são como que dimensões alheias e, portanto, indiferentes uma à outra. Expressão da acolhida de um dom gratuitamente oferecido, a fé constitui o húmus no interior do qual a razão pode oferecer o melhor de si, explorando ao máximo suas próprias e intrínsecas virtualidades, em vista de uma compreensão cada vez mais profunda dos mistérios de Deus, do ser humano e da inteira realidade criada.
No exercício desta peculiar incumbência, Scotus se destaca pela fina acribia em bem discernir, o que lhe possibilitou dissipar inúmeras confusões e esmerar-se na especulação acerca dos mistérios da fé. O Doutor sutil se caracteriza, ainda, por um raciocínio deveras singular capaz de, num cerrado diálogo com seus interlocutores, desconstruir seus argumentos e forjar conceitos e linguagem novos cada vez mais precisos e inclusivos. Com Scotus, talvez a teologia cristã tenha atingido os mais altos píncaros da especulação. Scotus é filho daquele período plasticamente descrito por Huizinga como “outono da Idade Média”. Todavia, seria injustiça nossa considerá-lo apenas o derradeiro fruto daquele longo e rico período histórico. Scotus constitui, na verdade, o fruto maduro daquela fecunda estação, porque sorveu no melhor dos modos a mais genuína seiva que corria pelos veios mais profundos dos sulcos de então.
É visível, em nossos dias, o crescente interesse pelo pensamento de Scotus. Nosso tempo parece marcado pela experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela deslegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto em face dos grandes projetos construídos sobre a razão, que parecia constituir um sólido alicerce. Chega-se a falar em pós-Modernidade como termo apto a exprimir o total desencanto frente a todas as grandes pretensões totalizantes e excessivamente pretensiosas da Modernidade. Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a “epistemologia forte”: racionalista e naturalista. Por esta razão, poder-se-ia dizer que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV. Estaríamos, porventura, presenciando hoje uma configuração cultural mudada no seio da qual estariam sendo recriadas condições propícias à aceitação da proposta do Doutor sutil? Estaríamos, finalmente, mais predispostos a acolher o modelo defendido pelo ilustre pensador escocês de uma sadia pluralidade dos diversos saberes mediante um processo de profundo respeito pela autonomia de cada um deles?

Extraído de http://www.itf.org.br

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Platão - Mito do Anel de Giges.

359a - e
Dizem que uma injustiça é, por natureza, um bem e sofrê-la, um mal,mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem - não pagar a pena das injustiças - e o maior mal - ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre estes dois extremos, deve, não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e fosse verdadeiramente um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem sofrer injustiças, pois seria loucura. Aqui tens, Sócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua origem, segundo é voz corrente.
Sentiremos melhor como os que observam a justiça o fazem contra a vontade, por impossibilidade de cometerem injustiças, se imaginarmos o caso seguinte. Demos o poder de fazer o que quiser a ambos, ao homem justo e ao injusto; depois, vamos atrás deles, para vermos onde é que a paixão leva cada um. Pois bem! Apanhá-lo-emos, ao justo, a caminhar para a mesma meta que o injusto, devido à ambição, coisa que toda criatura está por natureza disposta a procurar alcançar como um bem; mas, por convenção, é forçada a respeitar a igualdade. E o poder a que me refiro seria mais ou menos como o seguinte: terem a faculdade que se diz ter sido concedida ao antepassado de Lídio - Giges. Era ele um pastor que servia em casa do que era então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direção à parte interna da mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. uma vez lá chegando, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o, e assim se tomou o poder.
360a - e
Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o homem justo pudesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e faze tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se dessa maneira, os seus atos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo caminho. E disto se poderá afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, por entender que a justiça não é um bem em si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efetivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça do que a justiça. E têm razão, como dirá o defensor desta argumentação. Uma vez que, se alguém que usurpasse tal poder não quisesse jamais cometer injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, pareceria aos que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Contudo, haviam de elogiá-lo em presença uns dos outros, enganando-se reciprocamente, com receio de serem vítimas de alguma injustiça. Assim são, pois, estes fatos.