sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A Verdade

Se observarmos a concepção grega da verdade (aletheia),
notaremos que nela as coisas ou o Ser é o verdadeiro ou a verdade. Isto é, o que existe e manifesta sua existência para nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou verdadeiro. Por esse motivo, os filósofos gregos perguntam: Como o erro, o falso e a mentira são possíveis? Em outras palavras, como podemos pensar naquilo que não é, não existe, não tem realidade, pois o erro, o falso e a mentira só podem referir-se ao não-Ser? O Ser é o manifesto, o visível para os olhos do corpo e do espírito, o evidente. Errar, falsear ou mentir, portanto, é não ver os seres tais como são, é não falar deles tais como são. Como é isso possível?


A resposta dos gregos é dupla:

1. o erro, o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas ou dos seres e surgem quando não conseguimos alcançar a essência das realidades (como no poema de Mário de Andrade, em que a garoa-neblina cria um véu que encobre, oculta e dissimula as coisas e as torna confusas, indistintas); são um defeito ou uma falha de nossa percepção sensorial ou intelectual;

2. o erro, o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é, quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não possui ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades que ele possui. Nesse caso, o erro, o falso e a mentira se alojam na linguagem e acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não correspondem à essência de alguma coisa. O erro, o falso e a mentira são um acontecimento do juízo ou do enunciado. [Juízo é uma proposição afirmativa (“S é P”) ou negativa (“S não é P”) pela qual atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P. O predicado é um atributo afirmado ou negado do sujeito e faz parte (ou não) de sua essência.]

Se eu formular o seguinte juízo: “Sócrates é imortal”, o erro se encontra na atribuição do predicado “imortal” a um sujeito “Sócrates”, que não possui a qualidade ou a propriedade da imortalidade. O erro é um engano do juízo quando desconhecemos a essência de um ser. O falso e a mentira, porém, são juízos deliberadamente errados, isto é, conhecemos a essência de alguma coisa, mas deliberadamente emitimos um juízo errado sobre ela.

O que é a verdade? É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas ou formuladas. Qual a condição para o conhecimento verdadeiro? A evidência, isto é, a visão intelectual da essência de um ser. Para formular um juízo verdadeiro precisamos, portanto, primeiro conhecer a essência, e a conhecemos ou por intuição, ou por dedução, ou por indução. A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas; exige, portanto, que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos sentidos. Em outras palavras, a verdade sendo o conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária, enquanto as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época, de sociedade para sociedade, de pessoa para pessoa. Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano das opiniões, nunca alcançaremos a verdade.

O mesmo deve ser dito sobre nossas impressões sensoriais, que variam conforme o estado do nosso corpo, as disposições de nosso espírito e as condições em que as coisas nos aparecem. Pelo mesmo motivo, devemos ou abandonar as idéias formadas a partir de nossa percepção, ou encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas. No primeiro caso, somente o intelecto (espírito) vê o Ser verdadeiro. No segundo caso, o intelecto purifica o testemunho sensorial. Por exemplo, posso perceber que uma flor é branca, mas se eu estiver doente, a verei amarela; percebo o Sol muito menor do que a Terra, embora ele seja maior do que ela. Apesar desses enganos perceptivos, observo que toda percepção percebe qualidades nas coisas (cor, tamanho, por exemplo) e, portanto, as qualidades pertencem à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas.

Quando, porém, examinamos a idéia latina da verdade como veracidade de um relato, observamos que, agora, o problema da verdade e do erro, do falso e da mentira deslocou-se diretamente para o campo da linguagem. O verdadeiro e o falso estão menos no ato de ver (com os olhos do corpo ou com os olhos do espírito) e mais no ato de dizer. Por isso, a pergunta a dos filósofos, agora, é exatamente contrária à anterior, ou seja, pergunta-se: Como a verdade é possível? De fato, se a verdade está no discurso ou na linguagem, não depende apenas do pensamento e das próprias coisas, mas também de nossa vontade para dizê-la, silenciá-la ou deformá-la. O verdadeiro continua sendo tomado como conformidade entre a idéia e as coisas – no caso, entre o discurso ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados -, mas depende também de nosso querer.

Esse aspecto voluntário da verdade torna-se de grande importância com o surgimento da Filosofia cristã porque, com ela, é introduzida a idéia de vontade livre ou de livre-arbítrio, de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre relato e fato, mas também da boa-vontade ou da vontade que deseja o verdadeiro.

Ora, o cristianismo afirma que a vontade livre foi responsável pelo pecado original e que a vontade foi pervertida e tornou-se má-vontade. Assim sendo, a mentira, o erro e o falso tenderiam a prevalecer contra a verdade. Nosso intelecto ou nosso pensamento é mais fraco do que nossa vontade e esta pode forçá-lo ao erro e ao falso.

Essas questões foram posteriormente examinadas pelos filósofos modernos, os filósofos do Grande Racionalismo Clássico, que introduzirão a exigência de começar a Filosofia pelo exame de nossa consciência – vontade, intelecto, imaginação, memória -, para saber o que podemos conhecer realmente e quais os auxílios que devem ser oferecidos ao nosso intelecto para que controle e domine nossa vontade e a submeta ao verdadeiro.

É preciso começar liberando nossa consciência dos preconceitos, dos dogmatismos da opinião e da experiência cotidiana. Essa consciência purificada, que é o sujeito do conhecimento, poderá, então, alcançar as evidências (por intuição, dedução ou indução) e formular juízos verdadeiros aos quais a vontade deverá submeter-se.

Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:

1. a verdade é conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição, dedução ou indução);

2. a verdade se exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser das coisas ou com os fatos;

3. o erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);

4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os enganos da percepção e da memória;

5. a causa do falso e da mentira, para os modernos, também se encontra na vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser controlada por ele;

6. uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular, individual, instável e mutável;

7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com capacidade para o verdadeiro.

Quando os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia (ou entre a idéia e o ideado), não estão dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia, um papel carbono, um “xerox” da coisa verdadeira. Idéia e coisa, conceito e ser, juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia. O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa, conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras. Como disse um filósofo, a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce. A idéia é um ato intelectual; o ideado, uma realidade externa conhecida pelo intelecto.

A idéia verdadeira é o conhecimento das causas, qualidades, propriedades e relações da coisa conhecida, e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário. Quando o pensamento conhece, por exemplo, o fenômeno da queda livre dos corpos (formulado pela física de Galileu), isto não significa que o pensamento se torne um corpo caindo no vácuo, mas sim que conhece as causas desse movimento e as formula em conceitos verdadeiros, isto é, formula as leis do movimento.
Fonte: http://www.portalveritas.blogspot.com.br/2013/04/a-verdade.html#more
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.  Ed. Ática: São Paulo, 2000.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Erotismo em Onfray

por Breno Lucano
Fonte: http://portalveritas.blogspot.com.br/2013/11/erotismo-em-onfray.html#more
Em Michel Onfray - o que não é novidade para ninguém -, a base da filosofia  se cristaliza na desmistificação da religião e do ascetismo enquanto modelos de ética, política, estética, erótica. Em todos os seus trabalhos, desde o primeiro até o último, o ataque frontal a Deus, sobretudo em seu aspecto monoteísta, sobressai e fundamenta seu pensar. Esse ataque, notável por sinal em Tratado de Ateologia, dá vasão a um materialismo hedonista e libertário. Mas libertário em que sentido? De que modo ele se vincula ao erotismo?
Vejamos. Nossa cultura judaico-cristã se familiarizou com a idéia do amor enquanto carência, falta. Maldita herança de Platão. Homens e mulheres provêm de uma unidade mítica perdida e dissociada com o passar dos tempos e, sob esse prisma, surge o amor enquanto força capaz de uni-los novamente, restabelecendo a unidade. Homem e mulher se encontram num belo dia e se apaixonam. Dessa paixão surge o casamento, instituição sagrada porque querida por Deus. A unidade - codificada pelo casamento - se consolida na união sexual no seio do matrimônio que, por último, gera os filhos. Homem, mulher, filhos: família feliz, família concreta. E Deus viu que era bom!
Mas a família se modela naturalmente. Assim como Deus Pai coordena o mundo, o homem - agora Pai, já que gerou filhos - também coordena a família. A repartição social da família se dá em relação à progenitura. Para a mulher, apenas cuidar do fogo, da casa, cozinhar, tecer, fiar a lã, cuidar e educar a prole. Ontem como hoje, a dominação do homem-pai sobre a mulher-mãe. A sexualização das relações existem, sem dúvida. Mas sempre sob a perspectiva de filhos. As relações sexuais dissociadas do casamento são proibidas. O casamento é, aliás, a forma criada por Deus para o sexo seguro.
Onfray nomeia esse perfil de relações religiosas de Eros Pesado, caracterizada por uma imposição ascética sobre os desejos, reprimindo-os, recalcando-os, mobilizando forças de desnaturação de uma egodicéia que deveria conduzir à realização. A libido, antes como potência de autonomia, é vista pelos religiosos como catalizadora de angústias.  Contra esse perfil de massificação de relações, o autor elabora aquilo que ele chama de Eros Leve. Para tanto, a princípio deve-se dissociar amor, sexo e procriação.
Se a repressão dos desejos sexuais é propagada por são Paulo em suas diferentes Epístolas tendo em vista um casamento santo, de amor eterno e um lar fecundo com muitos filhos, em Onfray temos o inverso. A renúncia do amor eterno não implica na perda da ternura e doçura nas relações. Em Potência de Existir, reitera seu posicionamento:

"Não é preciso carregar a relação sexual de uma gravidade e de uma seriedade a priori inexistentes." (2010, p. 66)
Ora, não querer se comprometer por toda uma vida numa longa estória de amor perfeito e idealizado não esgota a sublimidade da união. Antes, sempre relembrando a leitura trágica que Onfray faz da vida através de seu Condottiere - à imagem do Zaratustra de Nietzche -, as relações podem se dissipar com o tempo. E à medida em que se nega a união prolongada prometida por um matrimônio se propõe a vivência do instante, do viver aqui e agora. Onfray prossegue em sua explicação em Potência de Existir:

"O eros pesado da tradição indexa a relação à pulsão de morte e ao que dela decorre: a fixidez, a imobilidade, a sedentariedade, a falta de inventividade, a repetição, o hábito ritualizado e descerebrado, e tudo o que faz parte da antropia. Em compensação, eros leve, conduzido pela pulsão de vida, quer o movimento, a mudança, o nomadismo, a ação, o deslocamento, a iniciativa. Para oferecermos um óbolo à imobilidade, sempre nos será mais que bastante o nada no túmulo." (2010, p. 66)
Assim, a dinâmica do eros leve rompe com os limites estabelecidos pela tradição daquilo que é uma família. Onfray deseja desconstruir as estórias mau resolvidas, os amores nunca iniciados, os arranjos fusionais amorosos que, em verdade, sempre foram enfraquecidos pelo eros pesado. Com muita frequência, as estórias se vinculam ao esquema  nada, tudo, nada: existimos separados, ignoramos um ao outro, nos encontramos, nos entregamos à relação, nos apaixonamos. O outro se torna tudo. De um momento para o outro, ele se torna o norte de nossa vida, o aferidor de nosso pensamento, o propósito pelo qual existimos. Repentinamente o outro se torna um estorvo, o cansativo e o repetitivo dão lugar ao tudo e, mais uma vez, retornamos ao nada. Não raro, esse novo nada se acrescenta o ódio e o rancor.
A saída se encontra no dispositivo nada, mais, muito. Dois seres não sabem que existem, se encontram e modulam a relação tendo por base o eros leve. Dia-a-dia eles elaboram o mais: mais ser, mais expansão, mais júbilo, mais serenidade conquistada. Todos esses "mais" qualificam o muito.
Outro aspecto que devemos analisar no modelo familista de Onfray é sua crítica à geração de filhos. Deus deseja a geração. O homem e a mulher - notem: o homem sempre escrito anteriormente à mulher! -, tementes a Deus, também geram filhos, segundo o sagrado modelo Pai, Filho e Espírito Santo ou ainda José, Maria e Jesus. Os filhos asseguram a completude e a concretização da família, como algo capaz de validar a própria instituição. Esse entendimento de geração é perpetuado no monoteísmo e, de modo específico, no Islã: mais abençoado será o homem quanto mais filhos homens tiver!
Mas a possibilidade fisiológica de conceber um filho não obriga a passar ao ato. Poder não indica dever. Temos as perguntas: por que ter filhos? Para quê? Onfray se pergunta, novamente em Potência de Existir?
"Que legitimidade temos para fazer surgir do nada um ser que, no fim das contas, só se propõe uma breve passagem por este planeta antes de voltar para o nada de que provém?' (2010, p. 69)
Sem amor eterno, resta o contrato firmado entre as partes. Lembremos que Onfray segue a linhagem dos pensadores contratualistas, como Rousseau. O amor deve durar, não há dúvida. Mas apenas até o momento em que o contrato for desfeito, em que uma de suas cláusulas for rompida. A união sinalagmática pressupõe a desobrigação das pessoas envolvidas na continuação das combinações. Ninguém é obrigado a prosseguir, ninguém é coagido a permanecer. O contrato estabelece que ninguém é obrigado a firmá-lo caso não seja capaz de cumpri-lo. A fidelidade não se cristaliza numa promessa ante o sacerdote, mas consigo mesmo.
A desconstrução da tradição judaico-cristã assume sua forma na defesa do feminismo. Percebam os textos sagrados: o pecado original, a culpa, essa vontade de saber, passa antes pela decisão de uma mulher. Por isso temos o ódio à figura feminina por tudo aquilo que ela representa: o desejo, o prazer, a vida. Por meio dela perpetua-se a culpa do pecado original, que Agostinho afirma transmitir-se por nascença, no ventre da mulher. Sexualização da culpa.
Culpada, a mulher deve sempre ficar à margem do homem. Suprimí-las, se possível. Esconder o pecado delas com as burkas do Islã. Enquanto cozinham para o marido, cuidam do lar, educam os filhos, a mulher cede espaço para a esposa e a mãe. Para a tranquilidade dos homens o que há de feminino na mulher deve falecer, ser reprimido. Isso porque a mulher representa o erro, o simples erro de existir.
A contenção da carne, dos desejos, da pulsão de vida constitui o modelo de virtude a ser seguido e desejado por deus. Dirá Onfray em Tratado de Ateologia:

"A potencialidade de uma sexualidade desligada da procriação, portanto de uma sexualidade pura,eis o mal absoluto." (2007, p. 86)
À sexualidade pura se entende a geração de filhos, a relação unilateral entre homem-mulher, a superação do homem - ativo - à mulher - passiva. Motivo pelo qual se compreende a condenação enfática da homossexualidade. Porque aqui se vê negada a divina função do pai, da mãe e da geração de filhos. Temos, em última análise a negação de Zaratustra e Condottiere, do indivíduo livre.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Tomás de Aquino: Considerações

"O uso comum chama sábios àqueles que ordenam corretamente as coisas e as governam bem; por isso Aristóteles afirmou: ordenar é o ofício do sábio."

Esse pensamento encontra-se expresso no primeiro capítulo da Súmula Contra os Gentios, e seu autor parece ter seguido rigorosamente a máxima aristotélica, tanto ao construir o maior
sistema teológico-filosófico da Idade Média, quanto em sua vida pessoal.
A biografia de Tomás de Aquino não apresenta momentos dramáticos, podendo ser sintetizada nas etapas principais de uma vida inteiramente dedicada à meditação e ao estudo. Nascido no castelo de Roccasecca, perto de Aquino (Reino das Duas Sicílias), em 1225, Tomás de Aquino estudou inicialmente sob orientação dos monges beneditinos da Abadia de Montecassino e, em 1244, ingressou na Ordem dos Dominicanos. Um ano depois encontra-se em Paris, onde continua a formação teológica com Alberto Magno. De 1248 a 1252, permanece em Colônia, ainda dedicado aos mesmos estudos, até que volta a Paris e prossegue as atividades universitárias, culminando pela obtenção do título de doutor em teologia, em 1259. Nesse ano retorna à Itália e leciona em Agnani, Orvieto, Roma e Viterbo. De 1269 a 1272, exerceu em Paris as funções de professor. Retornando à Itália, veio a morrer no convento dos cistercienses de Fossanova, não muito longe da cidade natal, no dia 7 de março de 1274, com apenas 49 anos de idade.

Tomás de Aquino foi um trabalhador incansável e um espírito metódico, que se empenhou em ordenar o saber teológico e moral acumulado na Idade Média, sobretudo o que recebeu através de seu mestre Alberto Magno. Como resultado, produziu extensa obra, que apresenta mais de sessenta títulos. As mais importantes são os Comentários Sobre as Sentenças, provavelmente redigidos entre 1253 e 1256, em Paris; Os Princípios e O Ente e a Essência, da mesma época; a Súmula Contra os Gentios e as Questões Sobre a Alma, compostas, ao que tudo indica, entre 1259 e 1264; as Questões Diversas, começadas em 1263; e finalmente a Suma Teológica, sua obra mais célebre, apesar de não concluída.

Em todas elas está sempre presente uma vasta erudição, não haurida diretamente nas fontes, pois Tomás de Aquino não conhecia nem o hebraico, nem o grego, nem o árabe. Limitado ao latim, conheceu e utilizou, porém, inúmeros autores profanos (Eudóxio, Euclides, Hipócrates, Galeno, Ptolomeu), os filósofos gregos, sobretudo Platão e Aristóteles, os árabes e judeus (Al Farabi, Avempace, Al Ghazali, Avicebrom, Avicena, Averróis, Israeli), e escolásticos, como Anselmo de Aosta, Bernardo de Clairvaux, Pedro Lombardo. Mas foi principalmente influenciado por Santo Agostinho e, mais ainda, por Alberto Magno, seu mestre em Paris.
Uma velha questão
Foi sobretudo em Paris que Tomás de Aquino viveu intensamente os conflitos intelectuais, típicos de sua época, que opunha o conhecimento pela fé ao conhecimento pela razão, a teologia à filosofia, a crença na revelação bíblica às investigações dos filósofos gregos. Em Paris esses conflitos ganhavam dramaticidade mais intensa do que em qualquer outra parte da Europa, pois a cidade era a capital do mais poderoso reino da Europa e pólo de atração de estrangeiros de todas as procedências. O papado não abria mão de seus direitos de organização da universidade e procurava fazê-lo no sentido de combater a predominância dos dialéticos (como eram então chamados os professores de filosofia) sobre os teólogos, isto é, os expositores e comenta-dores das Sagradas Escrituras. A dialética não deveria ser mais do que instrumento auxiliar e os mestres de teologia não deveriam fazer "ostentação de filosofia", determinava uma disposição papal de 1231.
Os conflitos já vinham de algum tempo, mas acentuaram-se depois da divulgação da filosofia aristotélica, graças a traduções feitas pela escola de Toledo na segunda metade do século XII. O efeito causado pelas obras de Aristóteles foi extremamente perturbador. O mais importante fator de conflitos entre os admiradores do estagirita e dos defensores da fé residia no fato de a doutrina aristotélica apresentar, à primeira vista, um conteúdo muito distinto da concepção cristã do mundo. Na física aristotélica o mundo é eterno e incriado. Deus é o motor imóvel do universo, o "pensamento que se pensa a si mesmo" e nada cria, movendo o mundo como causa final, sem conhecê-lo, "como o amado atrai o amante". Por sua vez, a alma não é mais do que forma do corpo organizado, devendo nascer e morrer com ele sem ter nenhuma destinação sobrenatural. Assim, a filosofia aristotélica ignorava totalmente as noções de Deus criador e providente, bem como as de alma imortal, queda e redenção do homem, todas fundamentais à doutrina cristã.
Apesar de tão distante dos dogmas cristãos, a filosofia aristotélica ganhou adeptos cada vez mais entusiasmados entre os dialéticos, que nela viam um alimento intelectual superior e se esforçavam para adaptá-la à revelação bíblica. Os esforços, contudo, não eram eficientes e os conflitos persistiam. O aristotelismo não servia, assim, à política dos papas e medidas rigorosas foram tomadas contra ele. Desde 1211, o concilio de Paris proíbe o ensino da física do filósofo grego e, em 1215, o legado papal, ao formular os estatutos da Universidade de Paris, proíbe a leitura da Metafísica e da Filosofia Natural, de Aristóteles. As proibições, contudo, caíam no vazio, diante do entusiasmo do público. O papa Gregório IX limitou-se então a ordenar a propagação das obras de Aristóteles, desde que expurgadas de afirmações contrárias aos dogmas da Igreja. Inicia-se assim a cristianização da filosofia aristotélica, o que só veio a se tornar possível graças ao espírito analítico, à capacidade de ordenação metódica e à habilidade dialética de Tomás de Aquino, que ele aliava a um profundo sentimento de fé cristã.
Fonte: Coleção Os Pensadores

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Conceito de Pessoa: a Inovação Radical do Cristianismo

Gabriel Perissé
Doutor em Educação pela FEUSP
Coord. Pedagógico do Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa (IPEP)
perisse@uol.com.br

«Nós, seres humanos, somos muito propensos a buscar a verdade,
mas muito contrários a aceitá-la.
Não nos agrada que a evidência racional nos encurrale...
Achar a verdade não é difícil,
difícil é não fugir dela quando foi encontrada.»
(Étienne Gilson)
«Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto.»
(Guimarães Rosa)


iz um dos pensadores mais lúcidos do nosso tempo, Julián Marías: “O cristianismo consiste na vida do homem como pessoa.” [1]
Sempre que o cristianismo foi fiel a si mesmo, ou melhor ainda, sempre que os cristãos foram fiéis a Cristo (e portanto a si mesmos!), a consciência do que seja a nossa condição de pessoas mostrou-se fundamental para viver, conviver, e para, de algum modo, saborear antecipadamente a vida eterna, ou a “vida perdurável”, como prefere dizer o mesmo Julián Marías.
Ser pessoa é ser alguém, e não algo, e não coisa, e não mero elemento de um grupo qualquer, mesmo que esse grupo defenda propostas religiosas ou até mesmo se defina como um movimento cristão ou católico.
A antropologia da pessoa humana é inerente à proposta cristã em sua radicalidade. Respira-se esta certeza de sermos pessoas em cada versículo do Evangelho, e ao longo de dois milênios, a Igreja, quando foi fiel ao seu Fundador, transmitiu esta certeza na sua vida sacramental, nos seus ritos, na sua ação apostólica e missionária, na sua arte, nas suas leis, na sua palavra.
A inovação radical do cristianismo é que não há verdadeira religião e verdadeira compreensão de nós mesmos, se falta essa radical compreensão de que somos pessoas. Uma religião humana pode sobreviver legitimamente como forma de governo temporal, como contribuição para o bem-estar dos povos, como admoestação à consciência moral, como apelo aos homens para que vivam em harmonia, mas só o cristianismo se nega drasticamente e se destrói quando despreza a sua raiz e se dedica a contribuir modestamente para que respeitemos a natureza, vivamos em paz etc.
A propósito, é justamente nesta raiz — nesta visão de que somos pessoas — que as diferentes religiões poderão se encontrar com o cristianismo e, neste terreno comum, aprofundar-se no que é essencialmente religioso, e não simplesmente humanitário. E toda a pessoa que, por sua vez, se vê e se reconhece como pessoa dá um passo em direção à religiosidade radical, e pode, portanto, ter um encontro vivo com Cristo, protótipo da pessoa.
A minha infidelidade como cristão ao conceito e à verdade de que somos pessoas é grave, é muito grave, pelo simples fato de que ser cristão é saber que o ser humano é pessoa. Por ser esta verdade tão fundamental na visão cristã, perdê-la de vista é o grande pecado. É despersonalizar-me, é trair o mais importante legado da doutrina cristã e o maior dom de Deus.
Uma religião (mesmo profundamente marcada pela referência a Deus ou ao transcendente) pode sobreviver atuando como elemento integrador de uma nação, por exemplo. Ouvi, certa vez, de um amigo judeu, que ele não crê em Deus mas acredita firmemente na religião judaica. Sua observância é construtiva, ainda que possamos e devamos ouvir o que diriam as autoridades teológicas do judaísmo a respeito da declaração deste meu amigo. Já o cristianismo, por seu caráter transnacional (e isso eu mesmo, um não-teólogo posso afirmar com tranqüilidade), perderia todo o sentido se se tornasse simples instrumento de coalisão de um povo. Sua beleza e sua identidade consistem em promover em cada um de nós a lúcida compreensão de que somos, antes de tudo, pessoas. O cristianismo testemunha que somos portadores dessa condição única de pessoas, seres livres em diálogo mas não escravizadas às leis físicas, biológicas, genéticas, sociais, culturais, mercadológicas, políticas, ideológicas etc.
É claro que o cristianismo tem muito a declarar, e muito declarou e muito há de declarar sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre a cultura, sobre a ética, sobre o trabalho, sobre a sexualidade, sobre os temas que interessam a todos. O cristianismo, além de abordar os grandes temas, as grandes preocupações, pode também pensar e nos fazer pensar sobre questões e aspectos secundários da vida. Contudo, se não olhar essas questões e esses aspectos à luz do que é decisivo, suas declarações, sobre o que quer que seja, perdem originalidade e não haverá diferença significativa entre uma reflexão cristã sobre o trabalho, sobre a morte, sobre a educação, sobre a política ou sobre a ecologia, e uma declaração de outro tipo, religiosa ou não.
A nossa própria descoberta e compreensão dessa condição única na realidade, a condição de sermos pessoas, será facilitada pelo contato com o que há de insubstituível e irredutível na visão cristã.

A pessoa é livre

“De que me serve fugir
de morte, dor e perigo,
se me eu levo comigo?”
(Luiz Vaz de Camões)
Em primeiro lugar: a pessoa é um ser livre. Deus correu o risco de criar um ser passível de rebelar-se, um ser capaz de recusar a existência dAquele que lhe ofereceu a existência. A vontade do Pai se faz no céu de maneira absoluta, mas é preciso pedir e lutar para que se faça aqui na terra.
Ser livre é um traço definitório da realidade da pessoa.
Há por vezes, nos meios cristãos, um grande receio de promover e estimular a liberdade. O receio é de que os homens se empolguem demais e se tornem libertinos. O cristianismo, no entanto, por ser uma religião pessoal, deve erigir-se defensor inigualável da liberdade, o que não supõe abandonar ou relativizar os conceitos de obediência, de serviço e de fidelidade.
O receio de alguns pensadores e líderes cristãos, ainda em nosso tempo, está em que o homem caia na tentação de uma liberdade sem vínculos com o passado, com as tradições, com a ordem estabelecida, com as instituições e com a verdade. O receio está em que o cristão se torne sartreano, identifique a liberdade com o seu próprio ser, e se considere condenado à liberdade. O receio é de que o cristão pense que a liberdade, mais do que uma perfeição aplicável à faculdade da vontade, como afirma a filo escolástica, seja uma qualidade do ser humano em sua totalidade. O receio é de que a liberdade seja absolutizada, “libertada” da lei, do dever, do dogma. Há o receio de que o cristão se torne nietzscheano e que, na busca da liberdade como um bem absoluto, negue a metafísica clássica, ataque o mundo dos valores criados pelos “medíocres”, ridicularize a ascese cristã criada pelos “ressentidos”.
Contudo, a liberdade humana consiste em que cada pessoa seja fiel ao dever, ao exercício (à ascese) de construir-se para o futuro, isto é, ao compromisso entusiasmante de inventar uma santidade pessoal dentro do grande caminho de seguimento de Cristo. O cristianismo é uma religião libertadora porque valoriza o estilo de cada pessoa na busca da santidade. Este é o objetivo exclusivo do cristianismo: libertar a liberdade humana e dar a cada um espaço de sobra, condições de sobra e energia de sobra para realizar-se plenamente como pessoa. A salvação consiste em libertar o homem da morte e de muitas outras escravidões que o matam pouco a pouco, que o desvirtuam de sua vocação para a felicidade, de seu compromisso com a felicidade.
A verdade do cristianismo liberta o homem de mil e uma mentiras camufladas em verdades.
O cristianismo é libertação. Libertação da massificação despersonalizante. Libertação do materialismo despersonalizante. Libertação do consumismo despersonalizante. Libertação do trabalho despersonalizante. Libertação do pensamento despersonalizante. Libertação da religiosidade despersonalizante.
O cristianismo interpreta a história como o lugar em que o homem exerce a liberdade dos filhos de Deus, e, exercendo-a, precisa muitas vezes reparar os erros cometidos por si mesmo, e os erros cometidos por cristãos e não-cristãos em virtude da liberdade que possuímos para fazer o bem e o mal.
As injustiças não são fruto do destino. Nascem de livres decisões de pessoas concretas que se encontram presas por uma visão (ou por uma cegueira...) antropológica e existencial deformada e deformante. Fazer o bem, igualmente, não se faz por acaso, por inadvertência ou por mero hábito. É preciso exercer a liberdade, escolher continuamente, aderir dia após dia a esse bem que se quer realizar.
Cristo é a pessoa livre por definição, e o cristianismo vê nesta liberdade o elemento comum entre o ser humano como imago Dei e o Deus que nos revela quem é, e nos revela quem somos. E se Deus é Amor que se revela, a liberdade humana autêntica necessita aprofundar suas raízes nesse autêntico amor.
Uma liberdade que se livra do amor é uma liberdade destrutiva. A liberdade desvinculada da verdade do amor é superficial e aparente. João Paulo II esclarece: “Ainda hoje, depois de 2 mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como aquele que traz ao homem a liberdade baseada na verdade, como aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e como que espedaça essa liberdade nas próprias raízes, na alma do homem, no seu coração e na sua consciência.” [2]
Em termos práticos, a pessoa libertada pela liberdade cristã liberta-se das ansiedades e tormentos que nos perseguem ao longo da vida.
“Não procureis o que comer ou o que beber, e não fiqueis assim como que suspensos”, diz Cristo (Lc 12, 29). No texto latino: “et nolite solliciti esse” — não fiquem assim tão agitados, tão preocupados, tão ansiosos, tão nervosos, tão inquietos. Há uma expressão latina, sollicitae opes, cujo significado é: as riquezas que nos deixam tensos...
O cristão, libertado de suas “riquezas”, consegue superar a insegurança com relação ao desemprego iminente, à precariedade da saúde, aos perigos que encontrará ao virar uma esquina, às solicitações imediatas da sobrevivência. Liberta-se da necessidade angustiante de afirmar-se diante dos outros e muitas vezes contra os outros. Liberta-se da sede de poder e da fome de mandar. Liberta-se do egoísmo, da crueldade e da indiferença, atitudes que tornam uma pessoa anti-pessoa pelo fato mesmo de não tratar os outros como pessoas. E, sobretudo, liberta-se do medo dos medos: o medo da morte.
Libertando-se de, o cristão liberta-se para. Sua liberdade consiste em unir-se ao Ser pessoal por excelência, ao próprio Deus, e ver seus pensamentos, atos e palavras orientados suavemente pela força do amor.

A pessoa é criativa

“Ó morte impiedosa,
Tu és feroz e inclemente!
Ninguém pode evitá-la.
Vences os czares e os príncipes,
Não poupas nem o rico nem o pobre.”
(Do folclore russo)
“Precisamos de uma vida inteira para aprender a viver; e,
o que é ainda mais espantoso, precisamos de uma vida
inteira para aprender a morrer.”
(Sêneca)
A criatividade é o antídoto para os nossos receios, para as nossas inseguranças, para as nossas pequenas ou profundas depressões, e, de maneira positiva, construtiva, condição sine qua non para alcançarmos a santidade.
A pessoa humana, exercitando sua criatividade, foge, de imediato, à armadilha do pessimismo. Ser pessimista pode decorrer de uma série de constatações óbvias. Basta ler os jornais e ouvir os telejornais para obter material rico e abundante. Basta consultar algumas estatísticas, mesmo as menos exatas. Basta deixar a imaginação mergulhar na realidade sangrenta e irrefutável de que, agora, neste exato momento, crianças são estupradas, homens e mulheres são massacrados, jovens se tornam prisioneiros das drogas, pessoas até ontem saudáveis definham vítimas de doenças incuráveis, basta pensarmos nas guerras, nos genocídios, nas torturas, nas perseguições injustas etc. etc.
E, no entanto, gerado no sangue do mais inocente de todos os homens, gerado na morte heróica (e na ressurreição revolucionária) do Filho do Homem, o cristianismo propõe o otimismo radical.
Ser otimista é acreditar e, por conseqüência, imaginar que podemos fazer o milagre, transformando a dor insuportável em uma nova realidade. Os fatos são os fatos. As coisas são as coisas. O veneno envenena. Há situações que infernizam a nossa vida. Mas as pessoas são perfectíveis, e são criativas, e podem, imaginando uma nova realidade, reunir condições (recebendo a “força do Alto”) para contribuir na renovação espiritual e material da face da terra. Ser criativo é surpreender. É “virar o jogo”, mesmo que seja na última hora, mesmo que tudo aponte para a frustração e a derrota.
Em Mc 16, 17-18, Cristo desenha o perfil da pessoa criativa. Em nome de Cristo, uma pessoa pode exorcizar a sociedade do mal. O cristão pode comunicar-se com todos, fazendo-se entender pelas pessoas mais difíceis e complicadas. O cristão pode dominar as circunstâncias que lhe sugerem cumplicidades espúrias. O batizado em Cristo pode sobreviver em contato com os elementos mortíferos da cultura. Aquele que foi mergulhado no sangue de Cristo pode curar os seus irmãos, os homens.
A pessoa é pessoa porque pode inovar radicalmente. Pode renovar e renovar-se. Pode abrir possibilidades onde só enxergamos impossibilidades. Pode criar, mesmo quando o desejo maior é desistir.
Há um poema de José Paulo Paes — Ivan Ilitch, 1958 [3] — relato e retrato de uma vida frustrada, impessoal e sem graça:
Trrrim, bocejo,
Roupão, chinelos,
Gilete, escova,
Água, sabão,
Café com pão,
Chapéu, gravata,
Beijo, automóvel,
Adeus, adeus.
Gente, trânsito,
Sol, bom-dia,
Escritório,
Relatório,
Telefones,
Almoço, arroto,
Contas, desgosto,
Adeus, adeus.
Clube, vento,
Grama, tênis,
Ducha, alento,
Bar, escândalos,
Pedro, Paulo,
Mulher de Pedro,
Mulher de Paulo,
Adeus, adeus.
Lar, esposa,
Filhos, pijama,
Janta, living,
Jornal, cismares,
Tricô, vagares,
Hiato, ausências,
Bocejo, escada,
Adeus, adeus.
Quarto, cama,
Glândulas, êxtase,
Dois em um,
Dois em nada,
Dever cumprido,
Luz apagada,
Adeus, adeus.
Horas, dias,
Meses, anos,
Cãs, enganos,
Desenganos,
Vácuo, náusea,
Indiferença,
Cipreste, olvido,
Há Deus? adeus.
O título refere-se a um dos textos mais cruéis da literatura universal: a novela de Tolstói A morte de Ivan Ilitch, que Vladimir Nabokov dizia ser a obra “mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização” [4] desse autor.
A simplicidade estilística de Tolstói torna a narrativa ainda mais contundente. Um homem de meia idade, sem grandes qualidades ou grandes defeitos, vive uma existência inútil. Um egoísta bem-sucedido, um cidadão comum, comodista (embora dedicado ao trabalho), atento às oportunidades profissionais, pai de família, homem pragmático, tem lá seus amigos, tem lá suas ambições mundanas, normais. E subitamente vê-se doente, uma doença de diagnóstico impossível e impossível cura. Uma dor crescente, incontrolável, angustiante, aterrorizante, e a certeza cada vez maior de que a morte está próxima, e é inevitável.
A angústia, a solidão, o ódio, o pavor diante da morte. A morte não pode ser detida. Ivan Ilitch, por sua condição de homem comum, decente, sem grandes arroubos filosóficos, sem grandes preocupações éticas ou religiosas, torna-se o protótipo de todos os homens: “Somos quase todos Ivan Ilitch, na nossa eficiência especializada, na superficialidade com que passamos sobre os problemas fundamentais, na indiferença em relação à dor, à verdade, à precariedade da vida. Quando essa estrutura depara com a doença, a morte e o egoísmo dos outros — não discursivamente mas num encontro frente a frente — sobrevém a angústia, o desespero, o poço sem fundo do sofrimento total.” [5]
O modo como Ivan Ilitch se aproxima da morte é o resultado da própria vida sem vida que ele levou a vida inteira. Num processo de fuga de si mesmo, de auto-negação mais ou menos voluntária, Ivan é obrigado a olhar-se no espelho da dor e do desespero. A morte, abismo negro para o qual todos caminhamos com maior ou menor consciência, abre-se diante do personagem, que começa a perceber, diante do inexorável, a futilidade de sua existência, a falsidade de suas conquistas.
Ivan começa a afundar na areia movediça do sofrimento, do medo, da angústia, do ódio, do pânico, do desespero. Falta pouco para perder-se no nada. Seu rancor contra os outros e contra si mesmo é imenso, mas este rancor desaparece de repente. Uma hora antes da sua morte, o moribundo, até aquele momento envolto na confusão interior, consegue compreender o sofrimento dos vivos e experimenta uma profunda compaixão pela mulher, pelo filho...
“E justamente então Ivan Ilitch caiu no fundo. Divisou a pequena luz e deu-se conta de que sua vida não fora o que deveria ter sido. Mas percebeu também que ainda era possível corrigi-la. Perguntou a si mesmo: ‘O que é "aquilo"?’ e acalmou-se, procurando ouvir alguma coisa. Foi quando sentiu que alguém lhe beijava a mão. Abriu os olhos e viu o filho. Teve pena dele. Sua mulher aproximou-se. Olhou-a também. Prascóvia Fiódorovna Golovina fitava-o com desespero, a boca aberta, lágrimas não enxugadas sobre o nariz e a face. Também teve pena dela.
“‘Sim, eu estou atormentando todo mundo’, pensou. ‘Eles têm pena de mim, mas estarão melhor depois que eu morrer.’ Quis dizer isto, mas não teve forças. ‘Aliás, para que falar? O que é preciso é agir’, pensou.” [6]
Tolstói era um obcecado pela morte, “todo el problema de sus cavilaciones giraba en torno a la pregunta de si la muerte es un fenómeno con sentido o no”, [7] e defendia a tese de que, na hora em que uma pessoa aprende a pensar, passa a pensar sempre na morte, mesmo quando está pensando em outras coisas.
A vida vazia do homem, seja ele um burocrata na Rússia do século XIX, seja ele um escriturário brasileiro em 1958, como no poema de José Paulo Paes, seja ele um de nós, no início do século XXI, possui o vazio [8] de quem não não refletiu radicalmente e por isso ainda não descobriu a sua condição de pessoa, realidade que confere sentido à vida e, portanto, à morte.
O criador da Logoterapia, Viktor Frankl, relata que certa vez foi ministrar uma palestra num presídio norte-americano e lá soube de um homem chamado Aaron Mitchell, condenado à morte, que na manhã do dia seguinte seria executado na câmara de gás. Pediram ao Dr. Frankl que lhe dirigisse algumas palavras. O problema é que só poderia comunicar-se com ele por intermédio de um microfone, de modo que todos os demais presidiários o ouviriam também:
“Imaginem a situação e a minha vergonha diante desse pedido. Mas eu tinha de dizer alguma coisa ao condenado, e acabei improvisando mais ou menos estas palavras — ‘Sr. Mitchell, de alguma forma penso que posso compreender a sua situação. Afinal, também eu vivi alguns anos à sombra da câmara de gás. Mas, acredite em mim, mesmo naquela situação não duvidei em momento algum do sentido incondicionado da vida. Ou a vida tem um sentido, e então ela o retém mesmo que vivamos um tempo relativamente curto; ou, se não o tiver, não o ganharia mesmo que vivamos toda a eternidade. Até uma vida falhada, cujo passado parece totalmente destituído de sentido, pode ainda ser preenchida de forma retroativa pela maneira como tomamos posição diante de nós mesmos e nos transcendemos a nós próprios nessa tomada de posição.’
“A seguir, contei-lhe a história da morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, que torna tudo muito mais claro do que eu poderia fazê-lo. Tenho indícios de que fui compreendido, e não só por ele.” [9]
Significativo que a história da morte de Ivan Ilitch tenha tornado tudo muito mais claro. É que nesta novela toca-se a brutalidade de uma vida despersonalizada, por mais profissionalmente decente que tenha sido, por mais politicamente correta que tenha sido, por mais aprovada que tenha sido pelos critérios sociais. E como é luminosa para as consciências a descoberta de que, embora não possamos fazer um novo começo, ao fazermos um novo fim recriamos a vida toda, descobrimos e conferimos um sentido até mesmo àquilo que não tinha sentido.
Há na novela de Tolstói um personagem chamado Guerássim, que acompanha o patrão em suas dores, que com ele conversa de modo ameno e simples, prestando-lhe inclusive o serviço generoso de segurar os seus pés sobre os ombros horas a fio, posição que dava ao doente um pouco de alívio, sobretudo nesta que é a pior hora dos enfermos: as noites sem fim. A generosidade e a humildade do servo fazem Ivan repensar na mentira que foi a sua vida. Também o sofrimento o obriga a repensar:
“O médico dizia que os sofrimentos físicos de Ivan Ilitch eram terríveis, e dizia a mais pura verdade; mas seus sofrimentos morais eram ainda mais terríveis que os físicos, e eram aqueles os mais torturantes.
“Os seus sofrimentos morais aguçaram-se quando, naquela noite, ao contemplar o rosto bom, de maçãs salientes, de Guerássim, que cochilava, assaltou-o a dúvida: ‘E se realmente toda a minha vida, a minha vida consciente, não foi o que deveria ter sido, e se ela foi «outra coisa»?’
“Veio-lhe à mente que poderia ser verdade aquilo que lhe parecera antes uma impossibilidade absoluta, ou seja, que a sua existência tivesse sido vivida do modo contrário como deveria ter sido. Veio-lhe à mente que, enquanto lutava para conquistar aquilo que as pessoas mais altamente colocadas consideravam bom e correto, as veleidades quase imperceptíveis que sentia e imediatamente repelia talvez fossem justamente as verdadeiras, e tudo o mais fosse apenas mentira. Os seus deveres profissionais, a sua vida bem organizada, a sua família, e esses interesses da sociedade, tudo isto talvez não passasse de mentira. Tentava ainda, diante de si mesmo, defender tudo o que fez, mas de repente sentiu a fragilidade daquilo que defendia. Não havia mais nada a defender.
“‘Mas se isto é assim’, disse ele consigo, ‘e se eu deixo a vida com o sentimento de ter desperdiçado e destruído tudo o que me foi dado, e se não posso mais corrigi-lo, o que vai ser de mim então?’”
“Deitou-se de costas e começou a examinar toda a sua vida de um ponto de vista completamente novo. Quando viu de manhã o criado, depois a mulher, depois a filha, depois o médico, cada um dos gestos deles, cada uma das suas palavras confirmava a horrível verdade que se revelara a ele na noite anterior. Revia-se neles, tudo aquilo que ele vivera eles viviam agora, e via claramente que nada daquilo deveria ser daquela forma, que tudo não passava de uma descomunal mentira, de uma pavorosa mentira que ocultava a vida e a morte.” [10]
O hoje menos conhecido Gustavo Corção (já se foi o tempo em que citá-lo, para elogiar ou criticar, atraía ódios e amores) transcrevia em seu Lições de Abismo [11] um trecho da novela de Tolstói. O personagem de Corção é um homem comum, com um nome comum, José Maria, um professor que descobre estar com leucemia, e nos últimos meses de vida escreve num diário suas reflexões.
A passagem escolhida por Corção é a seguinte:
“Ivan Ilitch, vendo que ia morrer, desesperava-se. No fundo da alma sabia, estava certo de que ia morrer, mas era incapaz de se habituar à idéia; não a compreendia sequer; não conseguia realmente assimilá-la. O exemplo de silogismo que aprendera no manual de Kieseweter, ‘todos os homens são mortais, ora, Caio é homem, logo Caio é mortal’, parecia-lhe exato enquanto se tratasse de Caio, mas não quando se tratasse dele, Ivan. Caio era homem, um homem, homem-em-geral, logo era forçoso que morresse. Mas ele, Ivan, não era Caio; nem era um homem-em-geral. Era Ivan, um ser à parte, totalmente à parte dos outros seres. Era o pequeno Vánia para a sua mamãe, para o seu pai, para Mítia e para Volódia. Era Vánia também para a ama-seca e para o cocheiro; e mais tarde para Kátienka. Em todas as alegrias, em todo os sofrimentos, em todos os entusiasmos da infância, da adolescência e da juventude, ele sera sempre Vánia.
“Conhecia Caio, porventura, o cheiro daquela bola de couro com que Vánia brincava? Beijava Caio, como Vánia, a mão de sua mãe? Ouvia acaso o ruge-ruge do vestido de seda quando ela passava? Fora ele, ainda, que levantara na escola a questão dos pastéis? Ah! E amara ele, Caio, como Vánia tinha amado? Ou como Vánia, não, como Ivan Ilitch, seria ele capaz de presidir uma sessão do tribunal?
“Caio é com efeito mortal, e é justo que morra. Mas eu, Vánia, Ivan Ilitch, com todos os meus pensamentos, com todos os meus sentimentos, sou outra coisa, completamente outra, e parece-me impossível que deva morrer. Seria horrível demais. Se eu tivesse de morrer (como Caio), bem havia de saber; uma voz interior dizia-mo. Mas nunca me disse ela tal coisa. Eu, e cada um de meus colegas de lógica, compreendemos muito bem que havia um abismo entre Caio e nós. E eis que agora... Não! É impossível. E contudo assim é. Mas como? Como compreender isto?” [12]
O personagem de Corção relê com um frio no estômago esse trecho que, no passado, lera com a tranqüilidade de quem, como qualquer ser humano normal, se sentia imortal. Revê a luta de Ivan para desvencilhar-se de qualquer identificação com Caio. José Maria, por sua vez, lutará para desvencilhar-se de qualquer identificação com Ivan, ou com o Sócrates dos tratados de lógica luso-brasileiros:
“Todo homem é mortal. Sócrates é homem, logo, Sócrates é mortal”. “Sócrates”, “homem” e “mortal” são conceitos. “Sócrates é mortal” e “Sócrates é homem” são juízos. O raciocínio é a progressão do pensamento que se dá entre as premissas “Todo homem é mortal”, “Sócrates é homem”, e a serena conclusão: “Sócrates é mortal”.
E nós também olharemos para Caio, Sócrates, José Maria, e para os próprios Corção e Tolstói como seres reais ou imaginários, seres lógicos ou ilógicos, como seres que morreram, mas com os quais não podemos nos identificar, não queremos e não vamos jamais nos identificar, sobretudo nesse ponto em que todos os humanos nos encontramos, como diz, com um certo cinismo, Luis Fernando Verissimo:
“Sei que você não gosta do assunto,
isso de virar defunto ou, mais apropriadamente,
presunto.
Mas ninguém escapa da sina
de ter muita proteína
e morrer, assim, al punto.
A biologia, meu caro, não erra:
estamos todos na cadeia alimentícia
da terra.” [13]
Seja a literatura, a filo, a lógica, a medicina ou a biologia, seja a tv, a nossa experiência cotidiana ou o senso comum, sejam as piadas de bar ou os provérbios de todos os tempos e das mais díspares culturas, tudo nos comunica o fato incontestável: a indesejada das gentes chegará para cada um de nós, ainda que no momento em que menos esperarmos — “Mors certa, hora incerta”, segundo o adágio latino —, ainda que nos recusemos a admitir que chegará mais cedo do que imaginamos.
No último momento, Ivan Ilitch aceitou a realidade da morte, e não só como um estóico a aceitaria, mas como uma pessoa, pura e simplesmente, dando à morte uma razão de ser na sua vida, vendo na morte um novo caminho e não o fim de todos os caminhos. Mais do que assimilar a idéia da morte, assimilou uma realidade, e descobriu novas realidades nessa realidade. Agora o silogismo se inverte: eu sou mortal, logo, todos somos mortais, e todos, como eu, merecem compaixão, compreensão. Porque a morte de uma pessoa é um momento sagrado, é o momento da grande revelação, é a hora em que a pessoa se vê a si mesma, sem mentiras, sem subterfúgios, momento em que é chamada a dar os últimos retoques e a assinar a obra de sua própria vida.
A certeza da morte deve (ou deveria) dar-nos a urgência dessa descoberta: a morte pode ser transformada e transformadora. Se a morte, para os animais — diz uma criança, segundo Pedro Bloch — é “o gato que saiu do gato e só ficou o corpo do gato” [14] , a morte humana é quando o corpo começa a sair de nossa vida (ou quando começamos a ser expulsos da nossa instalação corpórea) e a pessoa, por assim dizer, entra em si mesma, torna-se, mais do que nunca, o que foi chamada a ser.
A criatividade humana consiste em transformar a morte em vida, transformar o desenlace certíssimo numa afirmação incondicional da dignidade humana, da liberdade humana, da criatividade humana, da transcendência humana.
Vinicius de Moraes, no seu Poema de Natal, retrata a realidade da nossa existência:
“Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
[...]
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.” [15]

E o poema de José Paulo Paes que deixamos páginas atrás? Este termina com uma pergunta e uma resposta ambíguas: “Há Deus? adeus”.
Adeus é uma fórmula de despedida nascida de uma antiga frase cristã, “a Deus te encomendo”, que também deu origem aos adiós, addio, adieu etc. das outras línguas românicas. Uma despedida em forma de oração, com a qual os que se despedem demonstram confiar numa verdade: Deus protegerá a ambos. Se Deus existe, somos pessoas e, portanto, somos seres com um destino, não estamos desamparados. Deus existe? Se Ele existe (se a Vida existe), podemos continuar existindo, como se pode deduzir de outro poema, este de Manuel Bandeira, quando se refere à morte em A Mário de Andrade Ausente:
“[...]
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida!
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.” [16]
Ivan Ilitch, à beira da morte inevitável, despede-se da família, conforme conta a esposa no dia do enterro, a um dos amigos do marido que perguntara se ele, em meio aos tormentos, tinha se mantido consciente até o fim: “Sim — murmurou a viúva —, até o último instante. Disse-nos adeus quinze minutos antes de morrer, e ainda pediu que levássemos Volódia para fora do quarto.” [17]

A pessoa, aberta à transcendência

“O homem que não percebe o drama de seu próprio fim
não está na normalidade mas na patologia, e deveria
deixar-se curar.” (Carl Gustav Jung)
A morte humana, radicalmente diferente de todas as outras mortes, é um sinal de que estamos abertos à transcendência. Não só porque temos consciência da morte, não só por sabermos ser a morte uma realidade incontestável, mas também pelo fato paradoxal de que a negamos! De que não queremos aceitá-la! De que o nosso desejo é relativizá-la.
Nossa força é nossa fraqueza. O fato de nos agarrarmos à idéia da imortalidade deve-se a um motivo que mal podemos descrever e que por vezes nós mesmos consideramos ilusório, presunçoso e até arrogante: o de, contra todas as evidências, nos sentirmos imortais. Sentimo-nos imortais porque constatamos a nossa capacidade de criar, de transformar o mundo, de agir livremente, e como que nos revoltamos contra a lógica ilógica (e injusta) de, sendo criadores, sendo livres, pagarmos o tributo da morte.
Por outro lado, viver de costas para a realidade da morte é realmente viver no engano, no auto-engano. A morte acabará por vir, lenta ou súbita, violenta ou indolor, mais cedo ou mais tarde, “morrida” ou “matada” como diz o povo, e seremos desenganados pelos médicos, enterrados pelos parentes e amigos, lembrados durante alguns anos e, ao longo das décadas, finalmente esquecidos por todos os viventes, a não ser que nos transformemos em mitos mundiais ou coisa parecida. Seremos totalmente devorados pela morte implacável. Ou não?
Conta-se aquela piada — dois gêmeos no útero materno, e um pergunta para o outro: “Será que existe vida depois do parto?”
A consciência viva de nossa morte contribui para que concentremos a atenção no essencial. E o essencial é que cada um de nós é uma unidade viva que não quer morrer, e se sente compelido a refletir seriamente sobre essa profunda aversão à morte como um sinal de que a vida aqui (talvez...) não se esgota aqui.
A morte dos outros, dos amigos, dos familiares, mas sobretudo a inevitabilidade de minha morte é como que uma bofetada que me faz querer defender uma possível e desejável capacidade de viver depois da deterioração corporal. Não é uma bofetada na humanidade nem na idéia abstrata de vida. É uma bofetada em mim. Por que devo morrer, eu que não quero morrer?
Minha condição de pessoa significa que posso e devo subsistir em mim mesmo, que eu desejo, que eu aspiro, que eu anseio no mais fundo de minhas entranhas permanecer vivo, e vivo em plenitude. Em outras palavras, tudo isso que faz de mim um não-objeto, tudo o que faz de mim alguém, tudo o que faz de mim superior aos meus instintos: o meu querer, o meu agir, o meu criar, o meu amar, o meu saber apontam para a infinitude, para a não-morte. Cada um dos meus atos exprime e ao mesmo tempo constrói (ou, eventualmente, desvirtua) a minha dignidade de ser livre, criativo e aberto à transcendência, aberto e desejoso de desintegrar a morte. [18]
Podemos chamar de espírito à dimensão pessoal que consiste em eu sentir-me capaz de escolher quem eu serei, e de desejar que essa escolha perdure para além da minha atual situação como ser mortal, submetido atualmente a circunstâncias físico-sociais concretas, condicionado por uma série de dados de ordem material, marcado por heranças genéticas, enquadrado por exigências familiares, profissionais, mercadológicas, preso às rotinas comportamentais dominantes etc. Posso, por exemplo, em virtude do meu espírito, ultrapassar o paradigma individualista (e o indivíduo individualista é o menos personalista...), segundo o qual o ser humano é aquele que deve escolher sempre o que prefere e preferir sempre o que é útil, o útil de acordo com a lógica do homo oeconomicus, mas não da pessoa humana em sua radicalidade.
No entanto, como pessoa humana, posso preferir aquilo que a muitos outros parece inútil, mas que é, à luz de critérios não estritamente pragmáticos, o mais útil para a minha realização pessoal, para a minha contribuição para a vida social e até mesmo para a minha realização post-mortem. Um exemplo simples. Um rapaz carioca, desde o 15 anos, queria estudar astronomia, mas seu pai se opunha: “ninguém vai te pagar pra contar estrelas!” Esse rapaz se chama Marcelo Gleiser. Para satisfazer o pai, cursou dois anos de engenharia química, mas “minha cabeça não era para engenharia”. Transferiu-se para o curso de física e se formou em 1981. Fez mestrado e depois, na Inglaterra, um brilhante doutorado. Hoje é professor titular numa das universidades mais conceituadas do EUA. Diz ele: “Acredito que só iremos fazer muito bem aquilo que realmente queremos fazer. Escolher uma profissão ‘viável’, que não seja realmente desejada, pode até dar certo, mas é um compromisso arriscado com a vida.” [19]
Sem perceber talvez o alcance do que disse, Marcelo Gleiser tocou num tema muito mais vital do que poderia imaginar. Pomos em risco a nossa vida, a nossa felicidade perdurável, quando traímos o nosso mais profundo querer. Se a sua vocação era contar estrelas e dançar com o universo, colocaria em risco o seu amor à vida se obedecesse a uma outra voz que não aquela, se não fosse fiel ao chamado que as estrelas lhe faziam. Sua vida se tornaria inviável e possivelmente insuportável se desobedecesse à sua vontade de ouvir e contar estrelas, vontade que não era sua apenas, mas lhe foi como que suscitada pela próprias estrelas!
Diga-se de passagem, família, escola e meios de comunicação falham terrivelmente em sua tarefa de nos formar quando atropelam um processo de desenvolvimento da originalidade pessoal. Mais preocupados deveriam estar com o cultivo das capacidades reais de cada pessoa do que com os elementos externos e passageiros, do que com a necessidade de ajustar o indivíduo aos padrões sociais vigentes. Uma formação humana primorosa compreende que o melhor ajustamento de todos à realidade é aquele em que a pessoa encontra sua real identidade. Uma identidade valorizada gera maturidade e maturidade possibilita à pessoa dialogar com os limites impostos pelas circunstâncias concretas do seu entorno, com as pressões sociais, as pressões do mercado de trabalho, as pressões do ambiente político etc.
O cristianismo me diz que posso autotranscender-me, que posso ir além do que já sou e do que já possuo. O cristianismo me propõe novos objetivos, novos sentidos e novas conquistas. E não diz isso à humanidade, ao gênero humano, diz isso a mim, dirige-se a este “eu” que sou eu. Se, refletindo sozinho, não vejo uma razão razoável para não prosseguir vivo depois de minha morte, se eu me rebelo contra essa morte aterrorizante, o cristianismo apóia o meu desejo e diz que, se as pessoas ressuscitarão, prefiguradas que foram na pessoa de Cristo Ressuscitado, eu, que sou uma pessoa, também ressuscitarei.
O cristianismo é uma religião baseada no olhar para uma pessoa. Olhar para Cristo é olhar para uma pessoa criativa e crítica, possuidora de um delicado e complexo equilíbrio físico, afetivo, psíquico e espiritual. Sua mensagem é uma profunda revelação sobre nós mesmos. Ser como Cristo (ser o próprio Cristo é, em essência, o que o cristianismo define como santidade) consiste em, de maneira pessoal, retomar sua forma de agir, seu profundo conhecimento da realidade humana, seu comportamento salvífico, sua visão abrangente e integradora, sua atenção em fazer e dar a conhecer a vontade do Pai, consiste em retomar sua forma de analisar sentimentos, dados intelectuais, decisões e ações. Ser como Cristo é ver as possibilidades e alternativas de transformação daquilo que precisa mudar. É amar profundamente a Deus, a si mesmo e ao próximo, e entender que mudar o coração é o primeiro passo para dar a qualquer outra realidade um novo sentido, inclusive à nossa morte.
Neste contexto, a morte deixa de ser o fim e se transforma numa fronteira, deixa de ser um muro e se torna uma passagem, deixa de ser um abismo e se torna uma ponte. Se é evidente que sofreremos uma morte biológica, não é tão evidente que a pessoa que eu sou morrerá com o corpo que vai cair e apodrecer. O cristianismo afirma que eu não morrerei para sempre.
A morte faz parte do meu drama pessoal, da minha biografia. Mas posso interpretar minha morte como um ponto de partida (terminus a quo) e não mais como um ponto de chegada (terminus ad quem).
Enquanto Ivan Ilitch encarou a morte como um ponto de chegada, como um fim absoluto, manteve-se cada vez mais tenso, mais infeliz, e o ódio que sentia por todos e por si mesmo era a reação lógica de quem se encontrava violentamente frustrado, violentamente castrado, violentamente agredido em sua mais profunda dignidade.
Leiamos, porém, o desfecho da novela de Tosltói:
“‘Sim, eu estou atormentando todo mundo’, pensou. ‘Eles têm pena de mim, mas estarão melhor depois que eu morrer.’ Quis dizer isto, mas não teve forças. ‘Aliás, para que falar? O que é preciso é agir’, pensou. Com um olhar indicou o filho à mulher e disse: ‘Leve-o daqui... sinto pena dele... e de você também.’ Quis dizer ainda ‘Perdoe-me!’, mas acabou por dizer: ‘Deixe-me passar’, e sem condições de retificar o lapso, esboçou um gesto com a mão, sabendo que seria compreendido por quem de direito.
“E, subitamente, percebeu com toda a clareza que aquilo que o atormentava e oprimia começava a dissipar-se, a escoar para fora, por ambos os lados, por dez lados, por todos os lados: ‘Eles me dão pena, é preciso fazer com que não sofram. Preciso libertá-los e libertar a mim mesmo desses tormentos. Como isto é bom e como é simples’, pensou. ‘Mas... e a dor? O que fazer dela?’, perguntou em seu íntimo. ‘Pois bem, para onde você foi? Ei, onde está você, minha dor?’
“E prestou toda a atenção.
“‘Ah, sim, lá está ela. Muito bem, que fique. E a morte? Onde está?’
“Procurou o seu habitual terror da morte e não o encontrou mais. ‘Onde ela está? Que morte?’ Já não sentia nenhum medo, porque também a morte desaparecera.
“Em lugar da morte, a luz.
“‘Então é isto!’, exclamou de repente, em voz alta. ‘Que alegria!’
“Tudo isso, para ele, aconteceu num único instante, e a significação desse instante não se alterou mais. Mas para os que o rodeavam ali, a agonia durou ainda duas horas. Algo borbulhava-lhe no peito; seu corpo descarnado estremecia. Depois, pouco a pouco, o borbulhar e o rouquejar tornaram-se mais e mais espaçados.
“‘Acabou!’, disse alguém por cima dele.
“Ivan Ilitch ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito: ‘Acabou a morte. Ela não existe mais’.”
“Aspirou o ar profundamente, interrompeu a respiração no meio, estirou-se, e morreu.” [20]
Para Sartre, “a morte é sempre inoportuna”. Para o cristão, a morte é a oportunidade por excelência. Não vai aqui nenhuma morbidez. A morte é a oportunidade, como foi para Ivan Ilitch, de ter (ou de reafirmar) as atitudes decisivas, de dizer as palavras decisivas e transformadoras. Perante a morte, Ivan pensou nos outros. Conseguiu olhar para os outros com olhos humanos. Conseguiu pedir perdão, ainda que a palavra “perdão” tenha saído de outra forma dos seus lábios.
No original, há um trocadilho intraduzível. Ivan Ilitch tenta dizer “perdoe-me” (prosti, em russo) à esposa, mas acaba por dizer “deixe-me passar” (propusti). Este lapsus linguae ajuda-nos a detectar um aspecto profundamente humano (e portanto profundamente cristão) da despedida de Ivan. O moribundo, mais atento do que nunca à vida, quer pedir perdão, mas seu espírito o trai (ou o corrige), e ele pede passagem. Não tendo forças para corrigir-se, faz um gesto com a mão, “sabendo que seria compreendido por quem de direito”.
Quem teria condições de compreender essa falha, ou o que de fato ele quereria ter dito? Alguém que visse ser este erro, afinal, um inusitado acerto? Alguém que visse no próprio pedido de perdão um verdadeiro pedido de passagem? Perdão exatamente por quê? Passagem para onde?
Tolstói faz ainda uma outra significativa brincadeira verbal na última página da sua novela:
‘Acabou!’ (Koncheno!), disse alguém por cima dele.” Alguém por cima dele?
Traduzo/reescrevo o trecho de um ensaio que pode nos fazer vislumbrar algumas respostas:
“O dictum Koncheno! foi, como explica num de seus livros o Prof. Gary Jahn (Professor de Russo e de Literatura Russa na Universidade de Minnesota), o mesmo vocábulo escolhido por Tolstói para traduzir a última palavra de Cristo na cruz (cf. Jo 19,30), no resumo pessoal que fez dos Evangelhos, publicado em 1881, cinco anos antes de A morte de Ivan Ilitch.
“Prof. Jahn sugere que esta palavra dita sobre Ivan Ilitch de algum modo vincula-se ao contexto bíblico. Cristo, do alto da cruz, diz: “Está tudo consumado!” Na tradução oficial para o russo, a palavra usada é Sovershilos e não Koncheno. A primeira tem um impacto semântico profundamente diferente, indicando a morte no Calvário como a realização plena dos planos de Deus. Já Koncheno indica um fim abrupto, destituído de beleza poética. O leitor contemporâneo de Tolstói, inserido na tradição espiritual russa, não percebia a referência bíblica, a não ser que estivesse muito familiarizado com o modo pessoal como o autor interpretava o Evangelho. De fato, a tradução que Tolstói faz dos textos evangélicos é despojada, deles retirando todo o poder retórico e poético, sobretudo no que diz respeito à Ressurreição, ponto crucial da teologia cristã.
“Poderíamos pensar também que a expressão ‘alguém por cima dele’ refere-se a uma imagem mística: Cristo, no alto da cruz, acima da cama do moribundo, dizendo: ‘Está tudo consumado...’. Tal imagem, porém, é enganadora. Não ouso corroborar uma exata equivalência. Se esse “alguém por cima dele” pode ter um conteúdo religioso, e Tolstói sabe disso, pode também ser algo muito simples como haver de fato uma outra pessoa em pé, um criado, um médico, reclinado sobre o leito de morte de Ivan Ilitch.
“Esta é a dissimulada ambigüidade com que Tolstói encerra o seu texto. Se Cristo tivesse dito ‘Está tudo acabado!’, a mensagem da Tradição cristã tornar-se-ia irremediavelmente outra. Uma vez que Tolstói sabia ser muito difícil que os leitores russos do seu tempo fizessem tal associação entre o texto literário e o texto bíblico, podemos concluir que usou a expressão Koncheno! com a malícia de quem faz uma brincadeira secreta, e dessa brincadeira faz a pedra angular oculta da sua novela.” [21]
Embora Tolstói fosse um racionalista, afastando em princípio a busca de uma expêriencia e integração com o divino, e centrasse o seu cristianismo na exigência moral, na crítica social (para ele, se todos vivessem o Evangelho apenas naquilo que ele propõe no campo da convivência, uma revolução sangrenta seria desnecessária); embora construísse o seu cristianismo sobre a crença arraigada de que existe no homem uma “certa bondade antiga que se situa para além do verdadeiro berço da raça humana” [22] ; embora avesso ao místico - e, graças a essa atitude, acabasse por enfatizar o amor de Deus à matéria, ao concreto, ao humano -, o seu texto abre-nos para uma luz que nos transcende e, ao mesmo tempo, faz-nos, porque somos pessoas, transcender.
A pessoa que se identifique com a pessoa de Cristo poderá redefenir a imagem do homem ser-para-a-morte (Sein zum Tode), no dizer de Heidegger, lugar-comum da filo produzida num século despersonalizador, de guerras e violência de proporções nunca vistas. Apesar dos pesares, em virtude da visão que possui de si mesmo, o cristão, renunciando ao papel de profeta da melancolia e da resignação, dirá que o ser humano não é um ser-para-a-morte, mas um ser-para-a-vida (Sein zum Leben). O cristão vencerá a morte por ter ouvido e abraçado pessoalmente a mensagem do Crucificado: “A minha morte é a sua vida!”
Notas:
[1] Julián Marías. A perspectiva cristã. São Paulo, Martins Fontes, 2000, pág. 111.
[2] O Redentor do Homem, 12.
[3] Os melhores poemas de José Paulo Paes (seleção Davi Arrigucci Jr.). São Paulo, Global, 1998, págs. 109-110.
[4] Vladimir Nabokov. “The Death of Ivan Ilych”, em: Lectures on Russian Literature, New York, Harcourt Brace Jovanovich, pág. 238.
[5] Luiz Carlos Lisboa. “Nota sobre o Ivã Ilicth”, em A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro, Alhambra, 1981, pág. 6.
[6] Esta passagem do livro de Tolstói é uma composição elaborada a partir de três traduções brasileiras: de Gulnara Lobato de Morais Pereira (São Paulo, Saraiva, 1963), de Joaquim Cardoso Marques e Manuel Borges (Rio de Janeiro, Alhambra, 1981) e de Boris Chnaiderman (Rio de Janeiro, Ediouro, 1997). As citações do texto serão feitas aqui a partir desta última edição. No caso desta, pág. 112.
[7] Max Weber. La ciencia como profesión – La política como profesión. Madrid, Espasa Calpe, 2001, pág. 67
[8] Um artigo no jornal argentino El Clarín com o título Italia: como no tienen dinero, simulan salir de vacaciones pero se encierran en su casa ilustra esse vazio: Llenan su heladera con productos congelados para no tener que salir de su casa en mucho tiempo y para que los niños no se pongan de mal humor, compran videojuegos y libros. Apagan el teléfono celular y conectan el fijo al contestador... Esos son tan sólo algunos de los trucos que tres millones de italianos usan para engañar a su entorno: les dicen a sus amigos que se van de vacaciones pero en realidad se quedan en casa por falta de dinero. Los datos surgen de un informe de la asociación de psicólogos "Help me" titulado “Vacaciones topo”.
“La causa de este comportamiento asumido por tantos italianos sería la crisis económica y una depresión del poder adquisitivo, frente a modelos que no dejan de proponer la imagen del turismo de consumo a cualquier costo” afirmó Massimo Cicogna, psicoantropólogo y presidente del Ipsa (Instituto Internacional de Estudios Interdisciplinarios) y miembro de la asociación "Help me". Esa parece ser la razón de tantos trucos y mentiras, que intentan impedir que amigos y compañeros de trabajo se enteren de la cruel verdad.
Y la imaginación no tiene límites. Se entregan las plantas a los vecinos para que las rieguen y algunos, incluso, compran un aparato de rayos ultravioletas para estar bronceados al "regreso". Otros, compran por Internet souvenirs del lugar al que supuestamente viajaron. El informe agrega que un 19 por ciento de los italianos se quedará en casa este verano, aunque no siempre la falta de dinero es la causa. Algunos solteros no tienen con quién viajar. "Muchas relaciones son muy superficiales", comenta el psicólogo. "Cuando uno busca a alguien para viajar, no encuentra a nadie". (Em: http://www.clarin.com/diario/2003/08/06/t-600678.htm)
[9] Vicktor E. Frankl. Sede de sentido. São Paulo, Quadrante, págs. 42-43.
[10] Leon Tolstói. A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, págs. 107-108.
[11] É conhecida a observação de Oswald de Andrade a respeito deste romance: “Depois de Machado de Assis, aparece enfim um romancista entre nós”, quando este livro foi publicado, em 1950.
[12] Gustavo Corção. Lições de abismo. Rio de Janeiro, Círculo do Livro, 1976, págs. 35-36.
[13] Jornal do Brasil, 12/08/2001.
[14] Pedro Bloch. Dicionário de humor infantil. Rio de Janeiro, Ediouro, pág. 113.
[15] Vinicius de Moraes. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, pág. 223.
[16] Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. 11a ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1986, pág. 174.
[17] Leon Tolstói. Op. cit., pág. 17.
[18] Só para mencionar um caso recente e significativo. Por ocasião do falecimento de Roberto Marinho, os jornais lembraram que um dos homens mais poderosos do Brasil no século XX usava a conjunção “se” quando, nas reuniões com os filhos e executivos das Organizações Globo, referia-se a si mesmo: “Se algum dia eu vier a faltar”. (Veja-se, por exemplo, em:
 http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/08/07/ger017.html)
[19] Em Revista Veja. Edição especial nº 24, ano 36, Agosto de 2003, pág. 67.
[20] Leon Tolstói. Op. cit., pág. 112-114.
[21] Veja o ensaio “Comic Devices in The Death of Ivan Ilich”, de James L. Rice, que pode ser encontrado em: 
http://babel.uoregon.edu/complit/jamesrice.pdf.
[22] Gilbert Chesterton. Doze tipos. Rio de Janeiro, Topbooks, 1993, pág. 127.
Fonte: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/filosofia/o_conceito_de_pessoa.html